O sequestro da vida pela sociedade, o Estado e a vacina
Gerson Brasil
Secretário de Redação da Tribuna
Tem chamado a atenção o comportamento de um contingente, cada vez maior, da população no exercício da banalização da vida. É o comportamento da sociedade de massa que faz da vida um cálculo narcisístico e consumista, e pouco importam os efeitos provocados pela Covid. Não há tempo para a dúvida.
Efeitos esses traduzidos nesse momento das cem mil mortes a se desdobrar numa aritmética longe do resultado final. A multidão é um inferno, às vezes chega a ser burlesco, mas é a expressão da sociedade de massa, embalada pelo fetiche da mercadoria, muito bem descrito por Guy de Debord em “A Sociedade do Espetáculo”.
“É pelo princípio do fetichismo da mercadoria que o espetáculo se realiza absolutamente. O espetáculo é o momento em que a mercadoria chega à ocupação total da vida social”.
Mas essa ocupação social tem como correlata o sequestro do indivíduo pelo Estado e pelo cientificismo, um com o poder de executar e tolerar a violência; o outro no controle da vida medicalizada.
Numa sociedade de massa narcísica, a vida é um dístico feérico e exibicionista. Num passado remoto, estava atrelada à morte, hoje dissociada, vive-se e morre-se em tempos diferentes. A sociedade narcísica, do espetáculo, e dessacralizada, impôs derrotas avassaladoras ao moralismo, à abominável culpa, enterrou o amai-vos uns aos outros, ressaltou o amai-vos uns sobre os outros e excluiu os nefastos pecados da carne – feito memorável. Como o universo não é perfeito, elegeu uma liberalidade da indiferença a todo movimento que não seja espelho, e instituiu a felicidade obrigatória, antecipada por Aldous Huxley, em “Admirável Mundo Novo”.
Numa sociedade de imensa fome, desigualdades abissais e escravismo – tratado com o neologismo de trabalho análogo à escravidão -, o Estado dispõe do consumidor contribuinte, seja na brutalidade e insensatez no combate à Covid, seja na permissividade dos 65 mil homicídios registrados em 2017 pelo Atlas da Violência do IPEA, publicado em 2019. Um normal “apaziguador”. Em 2018, em Nova Iorque, foram registrados 289 assassinatos.
Em meio à sociedade de massa, há no Brasil uma tolerância à morte, à violência, com forte responsabilidade do Estado, mas encoberta com magias, festas, fortunas e todo sortilégio de crendices e palpitações espirituais, ecológicas e veganas. No quesito morte, a polícia tem um passaporte diplomático original, e a União e os estados, estatísticas encantadoras.
Nem os novos darwinianos dos lugares públicos, nem os reformistas e menos ainda os esquerdistas se voltam para chamar o Estado à responsabilidade, fora do marketismo de sobrevivência. Nem mesmo as mulheres, na tinta de Balzac, em Sarrasine (“com seus medos repentinos, seus caprichos sem razão, suas perturbações instintivas, suas audácias sem causa, suas bravatas e sua deliciosa finura de sentimentos”), cruzam armas para inscrever o feminicídio como crime hediondo. Quase 5 mil mulheres foram assassinadas em 2017.
Uma leitura crítica da Primeira Internacional ajudaria, ou não, como disse Alex Ferraz, certa vez, a respeito de um assunto, repaginando Caetano Veloso.
A vida se acopla ao consumo, aos modelos de sociedades industriais; no palco, uma espécie de ética da preservação a todo custo. A política foi reduzida ao particularismo e os movimentos pretensamente libertários dão as costas ao cotidiano e se agarram à sobrevivência, numa crença, estúpida, de que o Estado pode dispor da vida de cada um para seus propósitos salvacionistas universais. A vida, sem justificativa, dura ou arde nos romances, como em “O Morro dos Ventos Uivantes”. No Youtube, Marina canta Doce Veneno, enquanto Pedro Pedreira, atravessando todas as classes sociais, espera o Carnaval e a retardatária da vacina. A imprensa conta os mortos e as demolições.