Jair e as premonições com pólvora ou não
Gerson Brasil, Secretário de Redação da Tribuna
Para Walter Pinheiro
No tempo dos antigos, quando a razão era elaborada no cotidiano e a vulgata marxiana, o esquerdismo, não se mostrava avassaladora nem Freud estava popularizado, a vida corria na razoabilidade, na precaução, na ponderação. Procurava-se evitar os equívocos para um melhor aproveitamento do dia a dia e dos seguintes, com os sonhos tendo um papel importante. Sem ser privilégio classista, os sonhos moldavam o desejo imediato de obter alguma coisa, um bem material, um amor. O alcance mais imediato estava nas apostas no jogo do bicho, com um catálogo, vinculando números a animais, a sustentar as adivinhações.
Mas além dessa prática, os sonhos também serviam de premonições, para predizer o futuro, num sistema de alegorias e vinculações, a revelar fortunas e desastres, às vezes numa associação com fatos presentes; uma espécie de confirmação e de proteção na salvaguarda do destino. Embora individual, os relatos dos sonhos eram coletivizados e se misturavam às conversas sobre a sorte, a má sorte e os dramas, repartidos entre amigos e vizinhos, numa espécie de psicanálise leiga. Com a chegada da sociedade de massa, e a proeminência do saber acadêmico, a razão demonstrativa molhou, enxaguou e estendeu no quarador a oralidade, tornando-a uma peça caduca, envelhecida.
Sem saber, os antigos estavam em boa companhia, eram contemporâneos do grego Artemidoro, que no século II d.C. escreveu cinco livros, um manual de como interpretar os sonhos, e, tomando lado oposto a Freud, não fazia distinção entre sonhos de caráter sexual ou não, e sim como um elemento a mais na conturbada alma humana. Os sonhos faziam parte da vida, assim como os ofícios e os aprendizados, e eram preditivos.
A pós-freudiana Martha Nussbaum, em “Oedipus Rex”, coloca Artemidoro como um pensador para quem “todos os sonhos, incluindo sonhos sexuais, significam eventos contingentes futuros, geralmente eventos do futuro próximo, enquanto para a análise freudiana sua importância é geralmente para ser lido em termos do passado remoto, que é visto como tendo formado decisivamente a personalidade. Esta é uma diferença profunda; mas um não deveria, eu acho, superenfatizá-lo, levando-o a implicar que em Artemidoro a teoria é mágica e sem interesse psicológico. Tanto para Artemidoro quanto para Freud (como o próprio Freud viu), os sonhos são maneiras que a alma tem de falar consigo mesma”.
Interpretar os sonhos, para Artemidoro, era uma forma de viver e se prevenir contra o caráter perturbador da visão noturna, alegoria perigosa, fora de controle, que tanto poderia gerar a fortuna como o infortúnio. No livro V, traduzido do grego por Anise de A.G. D’Orange Ferreira, “ Oneirokritika de Artemidoro de Daldis”, o grego faz relatos e interpretação de vários sonhos, num deles, uma mulher doente perguntou a Afrodite (no sonho) “se viveria, e a deusa negou jogando a cabeça para trás: e não menor viveu a mulher: pois era um gesto contrário ao anterior (ela olhava para o céu)”.
Para além da sociologia, Jair admoestando a pólvora, sem sequer ter o corneteiro ao lado, deixa ver premonições, não na forma do reality show global urdido pelo DEM e tampouco essas formulações hipermaterialistas e transcendentais – a prometer o Éden – desses aglomerados salvacionistas, tão parvos como aqueles estudantes relatados pelo Dr. Schaumann, em “A Nau dos Insensatos”, de Katherine Porter: “turbulentos, barulhentos, desrespeitosos e ignorantes, mas estiveram na universidade”.
O Brasil persiste no racismo, e essa é uma questão, assim como a violência, que não pode ser abordada com protocolos, festas comemorativas, discursos de comoção e valorização da pobreza, a serem substituídos, logo depois, por outras “indignações”. O tema não só cabe nas premonições, como, contraditoriamente, é imperativo. No Youtube, Caetano Veloso e a Linha do Equador, com o sax de Rowney Scott e os trompetes de Joatan Nascimento e Roberto Silva.