O seqüestro e o aprendizado da telepatia
Para Maria Luiza
Gerson Brasil, jornalista e escritor
“Romântica, estou escrevendo para assegurar segredo guardado há muito tempo; não sei medir, exatamente, quando nos habituamos a mudar de século, como se muda de camisa. Costumava-se a comemorar o enterro de intermináveis dias comuns, intoleráveis, alegres e fastidiosos. Estávamos felizes, com a nova aurora, alguns mais exaltados escreviam poesias, como se tivessem gravando a ferro em brasa os acontecimentos, que por sorte, astúcia, ou cumplicidade, viriam alegrar as vidas. Muitas vezes com a desgraça dos outros. Costume preservado até hoje, embora a contemporaneidade caiba no éter. Há quem reclame, mas são as reclamações, os embates, rompimentos e trocas de balas e de vontades, o caminho da história.
Sequestrarei Roque. Calma, não se apavore. Hoje é segunda-feira, o fim de semana se afasta um pouco, mas não muito, preservando o cuidado para não o perdermos de vista. Quer a discórdia? Amarre barbante na semana sem o fim, como se estivesse assistindo a um filme de 2 horas em noventa minutos.
Se amo Roque, claro que sim. Mas o amor não se pesa, como farinha, nem estica como chiclete. As observações que se aplicam, ou os ditos estabelecidos, são meras suposições de observadores, dotados de títulos ou escritos, ou sabedorias, mas com a mesma verdade de quando subo o elevador e digo que no décimo sétimo andar alguém me ama.
Não é mais do que uma suposição, atrai, mas também afasta, se a água no copo não está gelada. Por descuido ou negligência estava fora da geladeira.
Contatei uma agente imobiliária e aluguei um apartamento em Manhattan, na Rua 42, cruzamento com a Broadway. Fiz vários cálculos, com a ajuda de uma amiga, planejei e já está em execução o seqüestro de Roque. Sei que ele é medroso, a violência nos espia, cotidianamente. Vou utilizar uma equipe de mulheres. Mas nem por isso serão levianas, pelo contrário; uma das exigências do contrato é a determinação de entregar a mercadoria intacta, fisicamente e sexualmente. Para mim, Roque tem o sabor dos livros da estante. Basta olhar, não se empresta.
Por que o seqüestro? Porque hoje é segunda-feira e amanhã é terça e nos dias seguintes o romantismo continua, com seus contornos, sem que se saiba exatamente como conseguimos não tropeçar. Se tropeçamos nos punimos e execramos aquela “vaca” que derrota a geometria, e o volume não conhece o excesso.
O apartamento está arrumado quase uma cópia, não fosse a lareira, as mantas, os castiçais e as cortinas de três metros de altura. Levarei as xícaras de chá e de chocolate, menos o copo do uísque e as taças de vinho.
Uma vita nueva requer comemoração especial e não cachorro quente. Rita sempre reclama que o namorado insiste em levá-la para comer pizza, às vezes com a graciosidade do delivery. Suponho um casal romântico, mas ela quase não cabe mais nos vestidos e certa vez rasgou uma blusa, depois de insultá-la com blasfêmias e sem a dissimulação do rancor empregado.
Nem sempre a secretária causa ira. A suposição é inimiga da concórdia. Contudo, não é preciso prova, basta a evidência, assim como na ciência. É preciso, no entanto, um reparo. A ciência é apaixonante, nos gratifica e a retribuímos.
O amor bíblico, carnal e platônico tem exigências que certos dias, sobretudo, com freqüência, não conseguimos cumprir. Se por acaso houver abnegação será também dolorosa. Nesse caso a dávida, a realização, só caberá, como disse Dante “àquele que é eternamente abençoado”, ao invocar o desejo de ver a glória de sua dama, Beatriz.
Não é que Roque seja selvagem e deite raiz; passo ao largo de futebol, feijoada, churrasco, mas confisco, de modo suave, os olhares para a bronzeada, a se portar como se estivesse fugida recentemente do circo, ajudada por um símio.
Não sei se o hábito e a disposição a faziam saltar de um lugar para o outro como se fosse magia. Não conheço as chamadas ciências ocultas. Plínio, certa vez procurou me induzir a ler “A Terceira Visão”, de Lobsang Rampa. Vendeu mais de 130 mil exemplares no Brasil e os ingleses o adoraram. Declinei o convite, convencido pelo oftalmologista dos olhos enxergarem além do esperado. Parece que o misticismo se molda em diversos ambientes, sem recusa e sem filantropia.
Precavida, procurei ficar perto de Roque, caso a borbulhante executasse um desequilíbrio. Não seria acolhida pelos braços do toureiro e sim na churrasqueira.
O passaporte? Em qualquer lugar se fabrica carimbo, assim também, como outros objetos, desejos ardentes e o meu amor por Roque. Não se preocupe, dará certo. O amor é infernal, a paixão enlouquecedora, a carne é fraca e não o território do pecado, como anotou Santo Agostinho. As emoções são fortes e sempre bem vividas.
Se houver quebra de protocolo, contrate aquela banca de advogados que já serviu a diversos governos, todos sempre alugados e jurando manter La democracia. Mais instruções lhe enviarei por telepatia, estou treinando”.
Na imagem, pintura de Pierre-Auguste Renoir – Banhista enxugando a perna direita.