Carta do IAB/Ba ao prefeito ACM Neto sobre o Covid-19
O presidente do IAB, arquiteto Luiz Antonio de Souza, em carta ao prefeito ACM Neto, externa a preocupação dos arquitetos baianos com relação às consequências da pandemia do Covid-19 nas atuais condições de vida da população de Salvador. Leia a carta, na íntegra:
Salvador, 7 de março de 2020
Excelentíssimo Senhor,
Antônio Carlos Peixoto de Magalhães Neto
Prefeito do Município de Salvador
Praça Thomé de Souza s/n
Senhor Prefeito,
O Instituto de Arquitetos do Brasil Departamento da Bahia (IAB/BA), fundado em abril de 1954, é uma instituição sem fins lucrativos, de livre associação e de utilidade pública no âmbito estadual e municipal. Ao longo desse mais de meio século de atividades atua entre o conjunto das organizações voluntárias que desenvolvem ações de interesse público naqueles aspectos relativos a apreensão da nossa realidade, contribuindo e zelando pelos interesses da sociedade baiana, sobretudo nos campos de conhecimento da arquitetura, urbanismo e meio ambiente.
Assim, diante do quadro de pandemia do coronavírus (2019nCoV), numa perspectiva de cooperação proativa, externa publicamente a V.Ex.ª, as suas preocupações e encaminha propostas frente à proteção da vida e a precariedade urbana de Salvador, orientadas para desacelerar a transmissão do vírus e seu contágio. Neste sentido, o IAB/BA desde já se coloca à disposição da PMS, ao tempo em que disponibiliza a sua sede social, no Ed. dos Arquitetos, localizada à Ladeira da Praça, n.º 9, para abrigar algum aparato logístico no período de campanha do combate ao 2019nCoV.
Preliminarmente, saliente-se que nesse contexto as autoridades estadual e municipal, se posicionaram firmemente sobre o falso dilema da “mercadoria da dúvida”, fundado entre salvar as economias e/ou salvar vidas, situando a prioridades das suas ações nas pessoas para controlar a pandemia. Como observou o Prêmio Nobel da Economia Joseph Stiglitz, “se você não salvar as pessoas, a economia será devastada…”. Sem dúvida, o enfrentamento do 2019nCoV, que é um fato social, poderá exigir medidas radicais, para seu confronto, além dos esforços instituídos no campo das medidas médico hospitalares, do atendimento clínico, de tratamentos, entre outras.
Nessa perspectiva e diante do avanço inexorável da primeira epidemia de um mundo globalizado, o IAB/BA, recentemente, manifestou-se em apoio às prudentes medidas para conter o avanço da pandemia preconizadas pela Prefeitura Municipal de Salvador, frente ao risco eminente de contaminação de parcelas expressivas de seus cidadãos e colapso no sistema local de saúde. Agora, ao dirigir-se à V.Ex.ª, acredita também que os prognósticos relativos ao crescimento da pandemia em nosso Estado e, particularmente, no município de Salvador, com quase 3 milhões de habitantes impõem, cada vez mais a necessidade de construir-se um ambiente de solidariedade e cooperação.
Compreendemos que o enfrentamento ao vírus exige medidas extremas. A situação escancara as desigualdades, discriminação e divisão de nossa sociedade clarificando a desafiadora precariedade urbana de Salvador, já trágica em tempos normais. Nos segmentos de 0 a 3 SM de renda domiciliar a coabitação (existência de mais de uma família por domicílio) alcança valores que podem ultrapassar 80 mil domicílios do município. O grau de rusticidade das estruturas físicas das moradias o contingente de população que vive em cômodos cedidos ou alugados é expressivo e representativo desse quadro. São inquietantes também a taxa de desemprego no município (estimada em 17%), ao lado de indicadores sociais como aumento do índice de envelhecimento e, do ponto de vista do urbanismo e da arquitetura, as altas densidades residências encontradas, entre as quais a de 910 hab./ha, na localidade de Nova Constituinte, no Subúrbio Ferroviário. Completam esses indicadores sociais e urbanísticos, dados que em 2015, 10% aproximadamente das residências não eram abastecidas por água potável e quase 30% não possuíam esgotamento sanitário.
Visando ao aprofundamento do conhecimento da realidade local, para o adequado enfrentamento do 2019nCoV, o IAB/BA encaminha à PMS sugestões de processos políticos e sociais inovadores para fazer frente a situações mais agudizadas dessas desigualdades.
Desse modo, frente à construção da solidariedade e de ações coletivas propõe:
1 – A potencialização pela PMS do trabalho voluntário como auxilio às suas ações. Segundo definição das Nações Unidas, “voluntário é o jovem ou o adulto que, devido a seu interesse pessoal e ao seu espírito cívico, dedica parte do seu tempo, sem remuneração alguma, a diversas formas de atividades, organizadas ou não, de bem-estar, ou outros campos …”;
2 – A convocação pela PMS dos setores organizados da sociedade civil para auxiliar e imprimir uma dinâmica social mais cidadã nas ações de combate a propagação do 2019nCoV. Assim, entende-se que a crise sanitária e humanitária possa contar com mais um instrumento social para preservar a saúde pública, replicando e gerenciando, as diretrizes gerais do Centro de Operações de Emergência do Ministério da Saúde, desdobramento do Plano Nacional de Respostas à Emergência de Saúde Pública. Lançar mão de uma alternativa auxiliar como o Trabalho Voluntário é lançar mão de uma vertente adicional passando a contar com a ajuda extra de pessoal e alimentar um processo de mobilização social como reforço as ações do poder local. Atuar junto e com a população é requerer a cooperação proativa da sociedade face ao momento que enfrenta, contribuindo para potenciar as diversas iniciativas locais já em curso;
3 – Priorizar junto as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) as linhas da Estratégia de Saúde da Família que recebeu o nome de Programa de Saúde da Família (PSF) face a sua expertise de atuação na atenção primária. As equipes de Saúde da Família, através dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), vão aos ambientes nos quais os cidadãos vivem, portanto, estão presentes nas comunidades pobres e são “chaves” no conhecimento das condições sanitárias desses aglomerados de população. O município conta também com um bem estruturado Plano Municipal de Saúde 2018–2021, e faz parte da rede de Centros de Informações Estratégicas em Vigilância em Saúde, através do CIEVS Salvador, criado há dez anos. Centro cujo papel é o de acompanhar “a situação de saúde de Salvador no âmbito das emergências em saúde pública”;
4 – Constituir grupos da Agentes Voluntários (AVs) formados por de membros da sociedade civil, (médicos/arquitetos/assistentes sociais/engenheiros/ etc., e estudantes dessas áreas e afins), atuando em sintonia com os agentes de saúde municipal constituídos por que atuarão de forma sistemática para aprofundamento do reconhecimento desses aglomerados visando a ações emergenciais. Um outro grupo com profissionais remunerados de apoio: pedreiros, hidráulicos, eletricistas, auxiliares de campo, entre outros. Em ação conjunta com as organizações locais esses grupos agirão territorialmente nas ZEIS, no sentido de:
a) – verificar in loco as condições do esgotamento cloacal, lançamento in natura de esgoto nas ruas, encostas, etc. Após constatação lançar os agentes químicos adequados para a desinfecção (assepsia) dessas áreas de moradias, melhorando emergencialmente as condições de salubridade geral, portanto, ambiental;
b) – verificar in loco as condições de oferta de água tratada. Na ausência de água encanada ou insuficiente, improvisar formas de coleta das águas de chuva que ficariam acondicionadas em recipientes específicos, fechados, distribuídos em locais previamente estabelecidos, para uso em limpeza; outra ação seria abastecimento de outras cisternas com água potável tratada enviada em caminhões-pipa. Os reservatórios plásticos existentes no mercado poderiam ser adaptados para o oferecimento de água potável;
c) – promover visitas aos domicílios e levantar de forma ágil os contingentes de idosos e doentes, (dados parcialmente de domínio dos ACS do PSF) e verificar as condições de salubridade em geral: infiltrações, presença de insetos e roedores, e demais aspectos sanitários. Verificar o grau possível de isolamento físico dos idosos e condições a serem superadas face aos níveis de coabitação;
d) – ao verificar as condições objetivas de acomodação dos idosos e doentes, deslocar (na medida do possível) aqueles em situação mais precária para abrigos provisórios perto dos locais de residência. Esses locais poderiam ser as escolas que tem uma identificação (de pertencimento) com a comunidade;
e) – garantir aos idosos e doentes alimentação adequada e pronta. Nesse sentido é bom observar que para certos segmentos sociais, e respectivas faixas etárias seria melhor fornecer a comida pronta para consumo do que “cesta básica” para terceiros prepararem. Com o crescente aumento do custo do gás de cozinha muitas famílias não têm como preparar os alimentos. Para tanto se poderia aproveitar as cozinhas das escolas municipais;
f) – os AVs poderiam realizar pequenas melhorias nas moradias, em alguns casos divisórias melhorando o isolamento de doentes, e outras benfeitorias emergenciais nas moradias;
g) – todas essas ações além de dirigidas ao combate ao coronavírus, teriam como objetivos também reduzir o nível de propagação de outros quatro surtos epidêmicos que se manifestam nesse período estacional e no seguinte inverno: Dengue, Zika, Chikugunya e Influenza.
Contudo, assevere-se a distância do proposto com o que a história das cidades nos revela. Quando evocando as “melhorias sanitárias”, os pobres foram desarraigados, gerando o cruel esgarçamento social, aprofundando a segregação socioespacial na maioria das cidades e destruindo-se um complexo sistema de relações solidárias que em momentos como este se apresentam como condição de ação contra o 2019CoV.
Evidente, que essas ações visam contemplar a periferia da cidade e seus bolsões de pobreza, numa espécie de “profilaxia urbanística” emergencial. Uma verdadeira batalha de prevenção e melhoria das condições ambientais que se alcançadas, em graus satisfatórios, serão essenciais para enfrentamento do pós-pandemia e nos aproximarmos do cumprimento das metas dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030/ONU, bem como, através do engajamento dos cidadãos um acesso renovado e transformado à vida urbana – o Direito à Cidade.
Atenciosamente,
Arq. Luiz Antonio de Souza
Presidente do IAB/BA