Missão África: “Atendemos pessoas que haviam comido três dias antes”, relata estudante de Medicina jacobinense
A expedição humanitária aconteceu de 24 de janeiro a 7 de fevereiro e foi marcada por experiências impactantes
Após 10 dias prestando atendimento médico em vilarejos de extrema vulnerabilidade em Benin, quinto país mais pobre do continente africano, o grupo de 30 estudantes de Medicina, assim como os 14 docentes, retornaram ao Brasil com sentimentos renovados na bagagem: transformação, empatia e muito aprendizado. A Missão África, projeto da Inspirali, melhor ecossistema de educação em saúde do país do qual a Ages faz parte, aconteceu de 24 de janeiro a 7 de fevereiro, período em que atenderam cerca de 300 pessoas por dia em 10 diferentes vilarejos, totalizando cerca de 3 mil atendimentos. O objetivo é levar a Medicina humanizada como atividade prática e de extensão universitária ao currículo dos futuros médicos.
Em Benin, a mortalidade infantil chega próximo dos 50% no primeiro ano de vida e a expectativa de vida é em média 53 anos. Rodrigo Dias Nunes, diretor médico da regional Sul da Inspirali e coordenador do projeto, acredita que este tenha sido o único atendimento que estas pessoas vão ter ao longo da vida. “Tudo o que aprendemos nas cinco edições da Missão Amazônia serviu como base nesta experiência na África, porém em um patamar de dificuldades muito superior. Temos aqui no Brasil algo que faz toda a diferença para as pessoas: o SUS. Na Amazônia, por mais difícil que seja, a população tem acesso a medicação e a exames. Em Benin, as pessoas nascem e morrem e não há registro dessas informações. Não adianta passar uma receita para continuidade de medicação pois não possuem dinheiro para comprar. Muitas enfermidades poderiam ser solucionadas com uma boa alimentação ou o simples ato de beber água, mas lá eles não possuem estes recursos básicos”, conta.
Com consultórios improvisados sob a sombra de árvores, atendimentos sendo realizados em blocos de tijolo e bancos que serviam de maca para exames, os alunos aprenderam muito também sobre as diferenças culturais e tiveram que se adaptar ao idioma local. “Os mais velhos falam apenas o dialeto local e os mais jovens um pouco do francês. Então tivemos que improvisar muito com mímica e contamos com a ajuda de tradutores, alguns voluntários, que chegavam a caminhar mais de duas horas para nos prestar esta ajuda nos vilarejos”, complementa Rodrigo. A farmácia era centralizada e os medicamentos, arrecadados e levados pelos alunos, eram cuidadosamente classificados e organizados em grupos na véspera de cada dia de atendimento.
Rodrigo conta que os alunos fizeram toda a diferença, mesmo diante de situações extremas e muitas emoções. “Nos primeiros dias, tínhamos que estar muito atentos a eles. Tivemos muitas conversas de acolhimento e de apoio. Mas percebi que foi uma experiência de transformação para todos. Eles deram um show de conhecimento, destreza, resiliência, habilidade, carinho, união, foram realmente incríveis”, elogia.
“Trabalhamos em condições extremamente adversas. O calor era companheiro, inclusive no período da noite, quando chegávamos na casa de apoio e tínhamos que separar os equipamentos e medicamentos que seriam utilizados no dia seguinte. A população que nós atendemos vive em extrema vulnerabilidade social, falta comida, falta água, falta tudo. Inclusive as queixas mais recorrentes, durante os atendimentos, foram dor no estômago, dor de cabeça e fadiga em decorrência da fome e desidratação. Atendemos pessoas que haviam comido três dias antes e com mais de 24 horas sem beber água. A escassez é tamanha que ficávamos, alunos e professores, constrangidos em beber água na frente dos pacientes, e até evitávamos beber na frente deles”, relata o estudante Fellipe Brasil, da Ages em Jacobina, que integrou a expedição.
Fellipe ainda destacou a importância do sistema público de saúde: “Toda essa vivência nos desperta, ainda mais, para a importância das políticas nacionais de saúde e de como o Sistema Único de Saúde (SUS) faz diferença na vida da população brasileira e o quanto ele é necessário, apesar das falhas. Um caso que chamou a minha atenção foi de uma criança, de dois anos de idade, que havia quebrado o braço e já estava com o membro imobilizado há seis meses e não teve orientação médica de que a imobilização era provisória, que seria necessário fazer fisioterapia. Fizemos o atendimento e o braço já estava com uma limitação. Se não tivéssemos prestado atendimento, ela podia, inclusive, perder o braço. Neste caso, o mínimo faz muita diferença. E no Brasil, apesar das limitações, a população tem atendimento público para este e outros casos”, ressaltou o futuro médico.
Por fim, para Fellipe Brasil, a Missão África reforçou o ensinamento de que a Medicina vai muito além de insumos, recursos, instrumentos, altas tecnologias e exames. “Foi muito importante perceber que apesar de toda dificuldade, os pacientes nos mostraram a alegria de viver, no amor e carinho, pela recepção que tiveram com a gente. Assim, a prática de humanização no atendimento enriquece a vivência da pessoa e do profissional de saúde, não tem como participar de uma missão desta e não mudar o mínimo que seja”, finalizou o estudante jacobinense.