A bioquímica edita humanos, mas não a política e as paixões
Gerson Brasil
Secretário de Redação da Tribuna da Bahia
Para Alex Ferraz
No momento em que a bioquímica parece vacilar diante da Covid, nos deixando interrogações inacabadas, a francesa Emmanuelle Charpentier e a americana Jennifer A. Doudna ganharam o Prêmio Nobel de Química de 2020 pelo desenvolvimento do Crispr; uma técnica de edição de genes que permite curar doenças hereditárias, enxertar genes de animais em humanos e até mesmo fabricar pessoas sob encomenda.
Pouco se falou sobre o assunto, e nas redes sociais, nas TVs aberta e fechada não mereceu destaque. Nos jornais, o registro foi modesto, assim como a prisão em 2018 de He Jiankui da Universidade de Hong Kong. O pesquisador editou dois bebês do sexo feminino livres de, no futuro, virem a contrair Aids.
Em entrevista a Federico Kukso para a Revista Crisis, o bioquímico Feng Zhang, do MIT (Massachusetts Institute of Technology) e George Church da Harvard Medical School, moldou o pensamento cotejando: “se nosso destino se aninha em grande parte em nossos genes, o que aconteceria se a humanidade pudesse projetar e alterar os componentes individuais que constituem sua essência material? Imagine ser capaz de manipular uma região específica do DNA quase como corrigir um erro de digitação. Assim vamos eliminar muitas doenças genéticas”.
A tecnologia do Crispr já foi testada e abre um leque de possibilidades intrigantes, e, claro, não somente em relação aos nascimentos, como também para a edição da população. Com o Crispr, o que se conhece como padrões de relações sociais se tornaria anacrônico, afinal, ser escocês, brasileiro ou alemão perderia importância, o passaporte seria a edição de indivíduos modificados (quem sabe na perfeição almejada?).
A Covid tem dado trabalho, mas a ciência química é um território poderoso, mesmo com todas as dúvidas que possa suscitar. No entanto, é insuficiente para editar a política, as paixões e a ideologia. Afinal, como editar Jair, que não sai do espelho?; Doria, que libera cultos e escolas, com a pandemia explodindo?; as festas, as candidaturas a presidente na eleição que ocorrerá em 2022, e os prefeitos e governadores aturdidos com a pandemia, depois de terem afrouxado o isolamento? Como editar o Judiciário, de pouco prestígio na sociedade, desejoso de fazer uma Lava Jato da Lava Jato, com provas roubadas, na máxima de que “a Justiça seja cumprida, mesmo que o universo seja destruído”? Sacrificando os fins aos meios.
Na luta contra a Covid, a ciência conta com pouca ajuda, com poucas vozes, como a do neurocientista Miguel Nicolelis, que pediu a união da sociedade civil para enfrentar a Covid com determinação e transparência, alijando a política.
O pedido de Nicolelis é rejeitado pelos interesses confrontados, muitas vezes travestidos de virtudes que a sorte ou a habilidade soube arranjar; embora tenhamos uma Babel de falas, principalmente na internet, a afirmar a democracia, a diversidade, contudo, sem produzir conhecimento, muito menos reflexão, e menos ainda a inflexão do pensamento, são religiões politeístas violentas.
A política disputa esses eleitores vendendo “argumentos” de verdades políticas eternas, de redenção universal, e no contraponto a tola garantia de que, passada a “borrasca”, voltaremos a ser felizes normalmente, no moto contínuo, perpetuum mobile, adocicado. O primeiro argumento trabalha com a moral e o segundo, com a fé.
David Hume, na segunda metade do século XVIII, descartou os dois argumentos; no primeiro caso, rejeitando que a moral pudesse fundar-se em verdades eternas, e no segundo, descartando o contrato social primitivo. Hume via o governo não pelas qualidades e sim pela utilidade que possa ter, e que a liberdade é a perfeição da sociedade civil, sem precisar de salvaguarda, mesmo que “a indolência dos homens tende a esquecer, e sua ignorância a desprezar”.
Hume era escocês, mas foi laureado como escritor inglês, e, como se costuma dizer, o inglês é uma ilha. Nos trópicos de muitas falas seria interessante, sem ferir suscetibilidades, acomodar o narrador de “O Filósofo do Deserto”, de Márcio Salgado: “sugiro que num memorial de pequenos feitos sejam registrados os hábitos mais insólitos. Não ouso dizer quais seriam os hábitos dignos de nota, a lista não teria fim, além do que estaria sujeita a contestações variadas”. Mais tropical, impossible. No Youtube, Maria Bethânia pinta o trenzinho caipira de Villa-Lobos, com letra de Ferreira Gullar. Lá vai a vida a rodar/ Lá vai ciranda e destino / Cidade e noite a girar.