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A brilhante Dolores e os desafetos

Gerson Brasil

Jornalista e escritor

A passagem da virgem de Noiva,, 1912. Marcel Duchamp. Museu de Arte de Filadélfia

O telefone é um inferno, toca em horas inesperadas, ignora o tempo; pouco importa se chove desesperadamente, ou se a madrugada galopa, e a tarde abafada com mosquitos torna a respiração pesada e o incômodo se instala em toda a casa, até na varanda. Só nos filmes se espera a ligação de alguém, frequentemente com aflição. Cecília, com um pouco de surpresa, atendeu a ligação. Era Silvia O. Campos pausadamente comentando sobre Anísio Lopez. Sumiu. Você o tem visto? Sabe se ele continua a olhar os retratos, na esperança de ver aparecer algum indício da idade?

Outro dia o encontrei vagando pela feira, perguntei se estava fazendo compras e ele respondeu ‘um pouco sim e na outra volta os sapatos me castigam os pés’. Dói, me aflige na presença de outros sapatos e deus sem fazer qualquer admoestação. É feriado?  Desapareceu rapidamente. E nem ao enterro de Dolores compareceu. Cheguei faz 2 horas e como não tinha nada para fazer atendi seu telefonema.

Também não fui ao enterro. Sei que Dolores era bem estimada nos comentários ácidos, punhais que destroçavam a escrita de muita gente. Os novos a xingavam até as nuvens desaparecerem e os antigos lhe rogavam o inferno. Era um desprazer encontrá-la na livraria ou em algum almoço ou jantar. Quem a convidava, penso, tinha algum desafeto e se deliciava com a figura de Dolores, frente a frente, com aquele autor de reputação, olhando para a mulher que no dia anterior tinha escrito que ‘este libro no fue lo peor, pero mantuvo el infantilismo y la idea de que nacimos para ser felices’.

Manuel Carrera recolheu todas as manifestações injuriadas escritas e guardadas oralmente, na casa de parentes e correligionários, para abater um inimigo, e as depositou numa ‘figura repugnante que um dia haverá de desaparecer da terra, sem que tenha morrido. Os mortos merecem nosso respeito, porque desfrutaram de uma vida, às vezes honrosa. Nas calles distrações e no trabalho a procura de compensações maldosas, e sem conferir se o relógio estava no pulso e a caneta no bolso da camisa.’

Todos a tratavam como A senhora Dolores. O artigo sempre pontuava as observações desprestigiosas e iludentes, mas guardando o respeito e o temor de uma mulher brilhante, sem se dobrar a elogios gratuitos e a destronar sexos, idade, filiação, coloração política ideológica, religiosa e até mesmo aqueles que tinham a sensação de serem vanguardistas.

Soube que Manuel Carrera fora ao enterro. Sim, estava sóbrio e chegou a depositar flores. Parecia ter perdido um companheiro de tardes intermináveis, boliche, cafés e comentários sobre a incapacidade da rua se manter limpa, mesmo com o vento infernal a varrê-la toda a tarde, e como esse acontecimento poderia influenciar a escrita.

Não houve discursos. Os rostos estavam franzidos, mas algumas pessoas bateram palmas, chegaram também a ser ouvidas nas mãos de outras pessoas que estavam afastadas. No mais, o silêncio acompanhado da mudez que trancou a conversa, com a mesma eficiência que trancafiaram o caixão.

Havia muita falsidade ao redor de Dolores, só não foi possível levar para o enterro, porque os mortos são sagrados. Marília Martinez estava pensativa, como se a obrigasse inventar um mundo e não dispunha de ferramentas suficientes e mesmo que chamasse, engenheiros, encanadores e eletricistas não estaria segura de realizar a tarefa.

Tenho boas recordações de Dolores, sempre alinhada, em algumas ocasiões se vestia de modo como se tivesse tomado um purgante abrasivo e o vestido ordenado a contê-la, sem se despregar as vestes, na malícia abençoada. A irritação se fazia presente, do mesmo modo como a hipoteca da casa, quando Dolores mentia, inventava, mas antes embrulhava em soda cáustica, sem que fosse possível contestá-la, porque arremessava as palavras como uma bola de chumbo e sem chegar ao destino e com hilaridade as recolhia, como fazem os garotos com a ‘Língua de Sogra’. Um brinquedo delicioso e de grande escárnio, mas adorado e felicitado por toda a população.  Sem nenhum esquecimento.

Mas os desafetos, bajuladores e aquelas mixórdias de humildade desastrosas mantinham-se perto de Dolores. A conformidade estava posta porque não se falava de política. Era proibido. E proibido por Dolores. ‘A política desune as pessoas, as famílias e causa infelicidades, que não se recuperam. As amizades são rompidas, a indiferença passa a reinar e o que era antes um cumprimento, uma vaidade amena, torna-se uma tormenta. Deus há de nos conservar com as maledicências, mas sem a política.

Devemos continuar a manter a falsidade cordial do sorriso na boca, sem maldizer amigos e inimigos; uma civilização compacta que só cabe a nós’.

Silvia também mentia. Os outros a observavam com mentiras e encenações na reprodução de um ambiente que muito agradava aquela mulher sem casamento e sem filhos. Pouco falava dos parentes.

Mas se tornara amiga de Anísio Lopez, a quem nos apresentou como sendo um homem decente, que cultivava os costumes, porém trazia uma angústia enorme. Não sabia quantos anos tinha. A curiosidade o levou a vasculhar interminavelmente onde quer que os olhos e a mente alcançassem, mas só colheu malogros.

Quando Dolores se referia a ele deixava de lado a sisudez e as impertinências e se desdobrava em elogios e sorrisos, a empregar prazerosamente o mon petit garçon, mon amie; acendendo a perplexidade até nas paredes da magnífica casa.

Certa vez convidei Sílvia para visitá-lo e estendi o gesto a Dolores. Ficou contrariada e disse bon appétit. Fomos e encontramos a casa aberta, sentamos e começamos a lembrar que Anísio usava diversas roupas para ir a lugares. O flagrei de chapéu e imitando John Weiner numa cafetaria, falando em francês; ‘je veux une tortilla’( quero uma tortilha).

De outra vez se passando por um estrangeiro e ostentando um bigode, bem lapidado e uma flor espetada no terno.

Descontando essas aventuras que talvez tenha entusiasmado a dama da Avenida Corrientes, tirando-a do murmúrio e fazendo pulsar o que o decote guardava, “todos gostam de você.

Ás vezes é beneficiado quando o acolhem pela simplicidade exibida, e em outros momentos quando manca de uma perna. Uma arte que você desenvolveu con mucho gusto”.

Eu sei. Cheguei a conversar com Dolores (esvaziando vários copos de uísque e comendo lagostas) sobre isso e outras artimanhas. Mas não podemos nos contentar somente com a vida. De repente ela desaparece, assim como minha idade, e sobra apenas amigos e inimigos. É muito pouco.

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