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A cadeira que não senta

Gerson Brasil

Jornalista e escritor

A Cadeira de Gauguin. Van Gogh. 1888. Museu Van Gogh. Amsterdã. Holanda

Muita gente na casa e também na ampla varanda; poucos desciam a escada, estreita, era o único acesso, a desencorajar, a quem por visita ou para cobrar impostos ou entregar correspondências, jornais e revistas, concluir a jornada. Não havia caixa de correio, na parte de baixo da casa; dois hectares, muita terra, uns nódulos de árvores, quietos, sem mexer de folhas e nenhum fruto. Caso fossem transplantados para outro lugar, seria como trocar móveis e tapetes, como fizera Izabel, a substituir poltronas, mesas e o sofá. ‘Estavam comigo há muito tempo, já tinham decorado os hábitos da casa e não acomodavam mais graciosamente meu corpo. As visitas não reclamaram. Serviam-se dos móveis, como se estivessem ali pronto para o acolhimento, na data e hora esperadas.

Trocá-los não exigiu esforço desmesurado, nem despedidas afetuosas ou sangrentas. Como tenho uma boa noção do espaço, rapidamente escolhi os novos habitantes da casa, sem percorrer inúmeras lojas, ou ficar testando se esse ou aquele assento estava mais adequado do que o outro, se a cor combinaria com o assoalho e com o novo tapete, comprado recentemente e guardado no sótão’.

Olhei para as árvores e para os sapatos, tentei adivinhar o tamanho dos saltos, mas a distância onde me encontrava não era suficiente e nem me atrevi a calcular o que não sei. Nunca trabalhei numa loja de sapatos, e desconheço se há algum dístico que possa guiar o aventureiro a se tornar conhecedor relâmpago, lendo um ou dois livros sobre o assunto. Notei que os sapatos das mulheres chamavam a atenção, por exibir saltos vitoriosos, penso que com eles se poderia vencer facilmente uma guerra.

São disciplinados, conhecem, de modo até ríspido, não somente os caminhos; e não se cruzam alopradamente e nem causam hérnias.

Nas calçadas, aceleram e desaceleram quando atravessam a rua, ofertando ao local uma exposição breve, compacta, e mais a fúria de dobrar a esquina e se instalar na mesa do bar sem toalha, mas nem por isso ficam à vista, talvez por  guardar mulheres belas ou a hora do descanso.

Pilar Serrano Fontainebleau, mais conhecidas pelos saltos dos sapatos a esconder o doutorado em Letras Neolatinas, numa cidade acolhedora de universitários, livrarias e os protestos, sem cartazes. Só se ouvia canções em inglês, espanhol e italiano

Fuera los miserables e infelices que se creen dueños de nuestra vida.  Son bandidos de coca cola. Ritmadas com as palmas das mãos, a expressão chegava aos ouvidos de idosos, crianças, adolescentes, garçons de bares e restaurantes e donas de casa, fazendo compras e misturando o queijo com o ódio à polícia. Mas ao chegar à casa a polícia e o ódio desapreciam e entrava em cena vinho, pães e Rita Oliveira cantando  Am I Blue  e Quizas Quizas Quizas.

Serrano fazia segredo dos sapatos, inventava histórias alojadas numa prima do Caribe agraciada pelo marido com formidáveis sapatilhas confeccionadas por um italiano, do Ducado de Milão, família inferior, mas bons artífices. Nas festas as atenções estavam voltadas para a adivinhação de qual sapato ela usaria, sem cometer a gafe da duquesa de Guermantes. Repreendida pelo marido porque estava usando sapatos pretos e não vermelhos, a cor do vestido. Observação tão fútil, como os salões imperiais. Pilar tragava as observações, a inveja e as maldições que os sapatos lhes proporcionavam e as jogavam no lixo. ‘É uma desonra para os garis. Sei, mas é a lata necessária para essa gente’.

Acenei para Carla Fuentes, com sua roupa que espantava moscas, mosquitos, mas acolhia olhares disfarçados e dispostos a ler o dossiê do FBI. Ela correspondeu. Desceu as escadas com o mesmo temor de cair de uma árvore. A habilidade ficou mais aguçada quando se segurou no corrimão e olhou para a direita onde a paisagem era verde e alta e claramente se concluía que não haveria de desaparecer.

“É uma tortura essas reuniões. Há gente a se passar por gente, outras vestidas como se fossem gente e gente de todo os tamanhos e formatos. Impossíveis descrevê-los. Os donos da casa, não lembro os nomes, dispensáveis, porque fui acompanhando Marta, quebrando promessa, convencida estava de ter me esclarecido sobre não cumprir compromissos, e novamente terei de renovar a promessa. Renovarei sem dúvida e tantas e quantas vezes forem necessárias, porque há de chegar um dia, aquele dia precioso, onde não farei mais promessas. Estarei curada dessa obsessão, desse zelo que a família me presenteou, quando eu era ainda uma jovencita e hoje aos 53 permaneço jovial, graças às promessas cozidas nas barras dos vestidos e depois desfeitas.

Quando alguém jurava em não fazer determinada coisa era severamente repreendida por mamãe. ’Nunca diga isso, aqui é uma casa de respeito e prezo a memória de meus pais e avós que nunca fizeram juramento sobre qualquer coisa. Podia ser uma mentira que se sabia de antemão, ou o voto na miss da cidade ou no prefeito.

Jamais podemos jurar porque isto pertence ao reino do divino, do Rei – mas pode também haver uma rebelião -, e da justiça, que abusa do pecável e de transbordamento, injustiças, ardis, armadilhas, muitas vezes resultando em monstruosidades e descaradamente se sustentando na lei.

Quando prometemos, desde já nos desculpamos e não fará mal se continuarmos a prometer. Às vezes conseguimos cumprir, em outras ocasiões o desleixo, a fadiga, e o cansaço nos levam a rever promessas que não acreditamos, e menos ainda quem as ouviu’.

Lembra quando a Marta me levou para assistir a um strip-tease masculino. Argumentei que era descabido. Moda com os dias contados, cansativos e entediantes quanto uma fazenda de gado. Lá estão os bois e onde se encontra o meu bife? A picanha? Por acaso, posso levar um boi e colocá-lo no freezer ou amarrá-lo na perna do sofá?

Qual a razão do frenesi? Um homem nu é um homem nu. Pode ser Davi de Michelangelo ou o magarefe entregando nos supermercados o boi desossado em grandes partes. Davi pode ser visto na Academia de Belas Artes de Florença, na Toscana, Itália, o magarefe e aqueles rapazes da boate em qualquer boteco ou fast food, ou seja, o prato é comido por muita gente.

Quando terminei com o namorado do momento, ficou chateado. Disse-lhe que não estava absorta e hedonista numa galeria.

A apreciar Julio Cesar, ou o “Pensador” de Augusto Rodin. Olhou-me contrariado, a boca franzida o acompanhou. Ajeitou o belo terno, o punho da camisa e mexeu nas aboteaduras. Deveriam ser transformadas em brinco, esculturas reluzentes. As usaria, com vestido preto, abaixo do joelho e ombros à mostra.

Pesei que a decepção iria me contemplar  com a carteira de advogado. Perguntaria onde estava o título de senador romano.

Bebi e bebi novamente e tornei a beber, o calor me levava à bebida e terminei e arrastado um rapaz para o banheiro, onde descarreguei todos os prazeres. Saí, fui até a varanda onde se encontravam pessoas que discutiam, ou falavam sobre algo sem que fosse possível colocar algum interesse, para abaixar o volume, porém, sem perspectiva de acabar naquele momento ou no seguinte. Presumivelmente tomaria o caminho de casa, levado de modo brusco, ou seria depositado em algum concubinato.

Não é possível conversar, logo chega alguém e começa falar do casamento que não deu certo, os noivos fugiram; da geladeira agitada, chiado repugnante.

Não se dão conta que não cabem mais palavras porque outras a alcançaram e a babel ordinária encostou até os móveis na parede e a cadeira ficou sem espaço, espremida num canto minúsculo, onde era impossível sentar, logo ela que esperava ser apreciada”.

Como vamos embora? Não sei. Mas não foi você e Marta que me trouxeram para esta festa? E não sabe como sair daqui? Repito, não sei. Não dá para fugir? Penso que não. Então estamos na mesma condição da cadeira que não encontra lugar para sentar. Bem provável.

Vamos ficar como se estivéssemos lendo uma carta não escrita, porque falta o tema e os argumentos estão confabulando. Afinal, toda explicação é insuportável. Por mais que queiramos agradar o ouvinte, simulado.

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