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A doutora ensimesmada. Hora dessas, fico à deriva

Gerson Brasil

Secretário de Redação da Tribuna da Bahia

Para Sara Costa

Cisma, mania, a deliciosa forma de levar o corpo a se comportar para além do combinado e sem precisar da autorização do carrasco ou do efebo; Cícero gostava de beijar alguns de seus escravos jovens – un divertment -, mas a doutora e o protesto, este depositado na bolsa, disputava o espaço com o canivete, um maço de cigarros e pornografia. Ela ficava aborrecida porque os camelôs pararam de vender cigarro a retalho – podia fumar diversas marcas num mesmo dia e saber quem fazia o contrabando, os mais vendidos e as novidades chamariz. Tudo tem o seu lugar e todos aspiram; a cama de prego do faquir não compete com o leito da cortesã e a doutora bem postada com o bisturi em uma das mãos e o chocolate na outra, mergulhada na cisma, e em Roque, pensava em cozinhar um bolo, subir a escada, não subir a escada, não fazer o bolo, até que desaparecesse o suor do bigode.

Roque elogiava o suor do bigode e as pernas, acrescentava com dificuldade, excessiva, a boca, para imitar o personagem do filme, de nome desconhecido – e mesmo se lembrasse não haveria de acender tijolos na convicção de Roque de que se tratava de banalidade, mas suficiente quando as palavras faltam, ou quando elas são insuportáveis, obrigatoriedade atroz; quando mais adiante o diálogo terá sido inútil, e a recordação pode provocar briga, se alguém pergunta para outrem: o que eu disse?

Roque gostava de recitar os antigos – cada qual no seu qual -, um pouco para se convencer da utilidade de tomar banhos todos os dias, fazer três refeições, perceber a utilidade da criadagem e se certificar de que a doutora sempre fumava às 15;45, uns três cigarros, às vezes quatro. Será que ela comprou mais de um maço? Melhor ignorar, me fará bem e lhe adivinhar os hábitos é tão útil quanto fazer caligrafia.

Papai fazia. E tinha a tabuada. Os antigos se orgulhavam dele e mamãe o chamava de canalha quando a discussão ainda estava na Inglaterra, salpicada do francês da esposa, bem passado, com a entonação adequada, as pausas, e os pronomes, que tinham, enterrada a afetuosidade e só exibiam a esgrima.

Uma expressão a mais, uma pronúncia lisa como uma mordida, e o embate se fixava na terra brasilis. A linhagem das famílias era passada a limpo, e o português senhor de si quebrava todos os protocolos e chamava à cena a perplexidade dos antigos, tentando beber champanhe, mas saboreando rabo de galo e aguardentes com outros matizes.

Sou esquentada. Faço escalda pé, mas não mordo a mão de ninguém. Roque e a vizinhança estão convictos, mas ainda relutam em ficar convencidos, quem sabe esperam um longo elogio pela descoberta ou um tratado: comment faire une écriture. Teria pouca valia, mas a escrita tem dois caprichos: se fazer presente com seus modos irrefutáveis, tornando-a deliciosa e insurrecta, e mentindo descaradamente para o interlocutor, qual uma cortesã se colocando: accettare, ricevere con soddisfazione, piacere o amabile (aceite, receba com satisfação, prazer ou condescendência amável), mas senhora do texto, com seus imperativos e polifonias desafiadores.

Caprichos devem ser exercitados, por quem os tem, bem como manias e cismas, frente à abusiva civilização e bons modos. Quem não os tem, ou finge, exercita uma sabedoria de almanaque. Estou no terceiro dry Martini, cismei que a pedra de gelo não cumpre adequadamente sua função, Roque está fazendo a barba com invejável ponta de satisfação e esmero, e a vizinhança a lhe render elogios cafonas, como se estivesse preparando meu enterro. Hora dessas, fico à deriva.

 Foto – Moça com brinco de pérola, de Johannes Vermeer

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