A doutora: Licença, vou mijar; são as circunstâncias
Gerson Brasil
Para Antônio Matos, jornalista
Isto é um engarrafamento. Antes, a doutora cobriu o corpo, mas não com vestes, fez todas as obrigações da manhã – poderia pular algumas, não fosse a observação alheia, essa censura limpa, sem intimidação ou castigo, mas registro social implacável. Rodou alguns quilômetros e sem aviso o carro parou, andou um pouco e parou. Quando percebeu que a rua não passava embaixo do carro, só muito lentamente, e o hospital estava bem distante, mas o sol dormia no teto, e o aborrecimento, carona insuportável. A sentença não fazia justiça, mas resumia o impasse de modo claro. “Vou chegar atrasadíssima. Poderia ter ocorrido ontem, estava disposta, comi bolo, tomei café, abri a geladeira várias vezes; notei que apenas manteiga tinha migrado para o pão. Mas geladeira, dócil, e de muita utilidade, se deixa abrir e fechar até que a porta arrebente, com o técnico fazendo o funeral da borracha. Mas é a geladeira. O liquidificador fica quieto, como o gato, e sempre em cima de alguma coisa, ou pior, dentro do armário. Quando apareceu, trabalhava e muito, principalmente na criação de vitaminas, em especial a de banana, e do mais que pudesse ser transformado numa pasta, aquosa. Há muito a civilização é gelada e as pastas, os sucos, e o iogurte são os substitutos das vitaminas.
Quando o engarrafamento terminou sua função, de atanazar quem estava dirigindo carro e outros veículos, a doutora já estava vestida de macaco; riscou a portaria e também o atendente, o porteiro e um doente em cadeira de rodas. Depois as enfermeiras, as colegas, até ser abraçada pela doutora Catherine Pear Parker, pós-doutorado na Universidade de Oxford, especialista sobre drogas pioneiras para tratamentos de doenças raras. Sorriu pro macaco e perguntou em espanhol, “que pasa?”.
“Sequestrada por um engarrafamento durante várias horas, não sei quantos cigarros fumei, se bebi água, se senti fome e nem mesmo sei se estou aqui conversando com você, tudo porque alguém decidiu que as mulheres vão prestar serviço militar obrigatório, vão ser soldados. Havia carros em fila tripla, uma multidão, na porta do quartel, atravessava a rua, se despejava à esquerda, à direita, e os protestos e as análises.
Parte da multidão dizia que era perversidade com as mulheres, outros falavam em perfídia do governo. Populismo barato, mais uma discriminação. Fortíssimo, o fora milicos. Alguém repetiu a famosa frase de La Passionará, da resistência espanhola a Franco, “no pasarás”. Na outra multidão ouvia-se: “chegou a nossa vez”, “somos guerreiras”, “abaixo o machismo”. Olhei para a mulher, ela aparentava uns 70 anos, mas tinha mães de famílias arrastando os filhos, malhadas, exibindo os músculos, moças das classes médias, possivelmente atraídas pelo salário, pela autoridade e principalmente pela carreira. “Jogo 3 horas de tênis, faço academia e depois o emprego é meio turno, sem almoço, nem vale-transporte. As unhas? Agora são plásticas, tenho uma caixa, só me livrei das lentes de contato de Elizabeth Taylor, verdes, azuis, sépia, foram para a sepultura. Levarei o fuzil para treinar no sítio do meu tio. Quero ser sniper”.
“Os soldados não abriam o portão e nem se prestavam em organizar uma fila; impossível naquele momento, face aos gritos e certa rivalidade, que começou com xingamentos e se dirigia para choque de forças. A imprensa já noticiava as multidões e os desdobramentos, quando alta patente, “explicou”, numa entrevista, que se tratava de um projeto pioneiro, ainda em estudo, a contar com a ajuda de diversos civis, entre médicos, fisiologistas, psicólogos, cabeleireiros (?).
“É um absurdo que isso seja tratado, com alvoroço, ignorância, má fé, desrespeito e que se insurjam contra as forças armadas, pondo em perigo os direitos e deveres dos cidadãos, consagrados na Constituição”. Na explicação de especialista, com treinamento adequado, uma mulher seria um bom soldado, porque “o mito da força física era coisa do passado, “o MMA é um bom exemplo”.
O corredor onde estava a doutora conversando com Parker apinhado de gente, silêncio, e reações diversas; algumas mulheres choravam, outras sentaram no chão, empalideceram e quanto mais liam sobre o assunto, o pavor reinava maior do que o oxigênio.