Crendices
Acompanhe com atenção esta estória: Minha avó paterna se chamava Martiniana. Hoje ela é falecida; viveu 104 anos. Baixinha, compenetrada, gente séria, sisuda – meio brutinha, não era mulher de mentir, nem de inventar histórias. Eram os idos de 1950; ela morava na roça com meu avô Silvino e seus 21 filhos. Criação austera, viviam para a sobrevivência, com limitações, mas grande dignidade. Naquele tempo, naquelas roças cercadas de matas, soltas e malhadas, sem muita gente por perto, nem a influência desintegradora da civilização urbana, a vida se desenvolvia em uma frequência diferente da que conhecemos hoje, e a dinâmica das relações era mui estranha, comparado-se às dos padrões atuais. São tantas histórias interessantes, tantas estórias intrigantes, tantos causos curiosos. Numa determinada tarde a minha avó estava trabalhando no cultivo do algodão, numa planície que se estendia logo após a colina que divisava a casa da família e a fazenda de D. Neném. Para se chegar aonde ela estava era necessário se atravessar uma cortada de mata virgem, densa, e famosa de acolher tantas crendices. No meio da tarde, o meu pai – que era apenas um garoto – foi levar para ela água e lanche, e cruzou a famigerada mata. De um certo ponto mais alto ele conseguiu ver ‘voquinha’ inclinada trabalhando. Desceu uma gruta, subiu outro elevado e, para sua surpresa, viu que ela se encontrava agora num ponto oposto ao que ele tinha visto. Estranhou, deu meia volta e seguiu para o novo rumo. Chegando mais perto, procurou um lugar mais alto e olhou em volta, e, para um susto ainda maior, ela estava ainda mais longe e no sentido contrario. Ele estava sendo vítima daquilo que tanto era comentado pelos mais velhos: enganado pela Caipora. Muito tempo depois, cansado e assustado, encontrou sua mãe bem pertinho de onde ele estava. Algumas semanas depois, ele e um dos seus amigos de trabalho, conhecido como Daniel, saíram para caçar passarinhos naquela redondeza. Segundo ele, depois de se separar a uma boa distância do companheiro, avistou embaixo de uma moita alta um boi em pé que não tinha cabeça. Ele saiu dali assustado e achando que se tratava de uma “visagem”, e fez um teste: pediu a Daniel para ir lá na dita moita, sem lhe contar o que vira. Daniel foi até lá, ingenuamente, e voltou em desabalada carreira, assombrado com a mesma visão. Não muitos dias depois, era uma noite de lua cheia, minha avó se encontrava na cozinha, à luz de uma lamparina, adiantando a refeição daqueles que iriam para a roça no fim da madrugada do dia seguinte. De repente ela ouviu o alarido de muitos latidos nervosos dos cães que guardavam a casa. Eram latidos deferentes, assustados e assustadores, entrecortados por gemidos e grunhidos inexplicáveis. O barulho de mato esmagado cresceu e se aproximou do oitão da casa; o galinheiro se alvoroçou, e o barulho de patas dos cães em desespero se aproximou do quintal. A porta dos fundos, que era a da cozinha, estava só encostada – e era dividida em duas bandas. De repente – disse ela – perseguido e atormentado pelos quatros cães que guardavam a casa, arrojou-se porta adentro aquele “cachorrão” estranho, com cara estranha para um cão, com olhos faiscantes, andando meio de pé e meio de quatro, e passou em desespero roçando-se no vestido da minha avó, que também no susto, deu um safanão no bicho com a colher-de-pau que manuseava. O maldito saiu pela porta lateral, acuado pelos cães e não foi mais visto naquela redondeza. Muitos outros vizinhos daquelas bandas tiveram também suas experiências com lobisomens, caiporas, mulas-sem-cabeça e outros seres… Não precisa nem falar, já sei que você está achando tudo isso ridículo demais, crendice tola desse povo simplório da roça, da mesma forma que sei que você não crê na influência direta das fases da lua e movimento das marés na vida cotidiana de homens e animais, nem que haja uma energia tão negativa em uma pessoa, capaz de fazer plantas murcharem e animais adoecerem. Tudo bem. Você não acredita em cavalos alados ou sereias nos lagos, ETs ou chupa-cabras, e tem seus motivos pra isso. E eu pergunto: Você crê na intercessão dos “santos”? Ou na invocação dos mortos, numa sessão de necromancia? Ou que uma pessoa pode ser salva por ser religiosa, ou que a própria religião oferece libertação à alma sedenta de qualquer criatura? Você crê que alguém pode galgar o céu, tão somente porque frequenta uma igreja ou faz declarações ritualísticas compostas por líderes de denominações cristãs? Você acredita que Deus se agrada e recebe culto e adoração de gente hipócrita de vida dupla, que chora no templo, emocionado (a), com as mensagens e cânticos, mas que fora dali é desonesto (a), avarento, malicioso, ingrato, irreverente e incrédulo? Olha, eu acho mais fácil acreditar em Curupira e Boi tatá…
Itamar Bezerra.