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Damário em Prosa e Verso

Marcio Salgado*

Autora da biografia “Damário Dacruz: um homem, uma surpresa” (Edições Alba, 2014), Mariana Paiva era adolescente quando pôs na parede do seu quarto o fotopoema “Todo risco”, do poeta. Assim como ela, muitos baianos e baianas também decoraram os seus quartos, as suas salas e varandas, tornando-o o mais celebrado dos poemas de Damário. O poeta costumava levar no bagageiro do seu carro centenas de cópias impressas que deixava em consignação nas livrarias, vendia individualmente ou dava de presente às pessoas. Quando ele morreu, em 2010, a obra já estava na sua 17ª edição.

Mariana conta como foi o processo de realização desse fotopoema, entre vários outros que Damário compôs, sempre reunindo a poesia e a fotografia.A primeira versão de “Todo risco” foi lançada no Chile, em 1984. A ideia do fotopoema surgiu de um passeio que o poeta fez com a filha, Damine, que ainda não havia viajado de trem, ao subúrbio ferroviário de Salvador. Lá, o poetafez a fotografia dos sapatos sobre os trilhos que iria juntar-se ao poema formando uma obra única. “Em pouco tempo, o fotopoema transformou Damário Dacruz num nome conhecido na cidade.”

Ela conta a história do adolescente que, às vésperas de um trabalho escolar, procurou o próprio poeta para falar sobre as suas intenções nos versos do fotopoema. Tudo esclarecido, o aluno levou a redação para a escola. Mas eis que o professor disse: “Você não entendeu nada do que o poeta quis dizer.”Ao saber disso, Damário gargalhou.

Esse desencontro de opiniões, longe de causar algum embaraço, atesta as múltiplas leituras que se podem fazer de um poema ou outro texto literário. É preciso observar a soberania do texto, sem aprisioná-lo em leituras supostamente verdadeiras ou falsas.

Com os olhos voltados para a realidade e grande sensibilidade, Damário jamais perdeu de vista o sentido lírico da criação.Como bem disse no poema “Todo risco”: “Ninguém decide/sobre os passos/que evitamos.” Este poema é dos anos 1980, mas o poeta pertence a uma geração que lutou contra a ditatura militar que cerceava as liberdades políticas. A poesia inspirada na revolta das ruas misturava-se a um punhado de teorias libertárias.

A autora conta sobre o seu engajamento nas causas políticas, desde muito jovem. Quando estudante, Damário foi presidente do grêmio da Escola Técnica, em 1973. No ano seguinte começou a cursar jornalismo e a participar de eventos na universidade. Mais adiante, já funcionário da Telebahia, ingressou no Sindicato das Telecomunicações, onde juntou-se a Walter Pinheiro (que viria a se tornar senador)e outros colegas, que defendiam as causas dos trabalhadores.

Além do emprego na Telebahia, onde foi gerente da Divisão de Publicidade e Propaganda, Damário dirigiu a Fundação Cultural do Estado da Bahia. Colega do poeta na Telebahia, Nivaldo Lariú, que escreveu a apresentação do livro, conta também as suas anedotas do convívio que manteve com Damário. “Era uma farra, ele era um moleque, e por isso o chamava de erê”, afirma.O termo vem do idioma Iorubá e remete a brincadeira. Erês são entidades espirituais associadas às crianças.

Sobre a vida familiar, alguns episódios são relatados por Damari, que era irmã-gêmea do poeta, e o irmão caçula Danilo. Ele teve ainda o irmão do meio Daniel.Por conta dos nomes parecidos, o poeta gostava de bancar o esperto fazendo uso dos trabalhos escolares da irmã, para tanto bastava acrescentar a letra “o” ao nome da irmã. Ela protestava, mas “deixava pra lá”. Já Danilo, pedia para usar as camisas do irmão mais velho em ocasiões especiais.

Mariana comenta sobre a outra paixão do poeta, a fotografia. “Nas horas vagas de poesia, Damário saía com sua câmera fotográfica pelas ruas de Salvador. Não era preciso ser um grande acontecimento para ser clicado por ele, que se encantava exatamente pelo que era simples. Fotografar era como escrever poesia: era preciso apenas apurar o olhar para o que estava ali, ao seu redor”, afirma a autora.

No Pouso da Palavra, em Cachoeira, erguido num casarão do século XVIII, Damário empenhou suas forças até a realização do projeto. Foi como um grande sonho realizado. O local tornou-se abrigo da arte de muitos poetas e artistas do Recôncavo, confirmando a identidade agregadora de Damário. Alguns desses tomam parte nessa biografia, como os artistas Pirulito, Suzart e o historiador cachoeirano Manuca Passos, para quem “a maior característica de Damário era sua alma de sonhador, pois sempre se colocava diante das situaçõescomo um indivíduo romântico e também com seu olhar de artista.”Outro referido na biografia é o amigo e editor Fernando Oberlaender que editou e ilustrou seu livro “Segredo das pipas”, de 2003.

Damário nasceu em Salvador, em de1953, na rua dos Carvões, no Santo Antônio, bairro onde era conhecido de todos, e morreu na mesma cidade, em 2010, deixando muitos projetos em andamento, inclusive este do Pouso da Palavra.

Na juventude, o poeta conheceu Gal, com quem sonhou e depois casou. Ele havia prometido: “Um dia, a gente ainda vai se amar.” E assim foi. Casaram e tiveram dois filhos: Damine e Dimitri.

A biografia “Damário Dacruz: um homem, uma surpresa”, traz vários poemas do autor, intercalando os capítulos, e, ao final, uma sequência de fotos do poeta com amigos e amigas, no trabalho, em manifestações de rua ou nas suas viagens.

Entre esses poemas,“Gran finale” aparece em destaque na contracapa do livro. Nele o poeta despede-se com uma mensagem de grande sensibilidade: “Avise aos amigos/que preparo o último verso/A vida dura menos que um poema/E no alvorecer mais próximo/Saio de cena.” Nos versos fundos, mascontidos, o eu lírico do poeta anuncia as suas despedidas aos amigos. Em algum lugar, solitário, ele prepara o verso da sua retirada. Ainda há tempo de comentar sobre a brevidade da vida. Enxuga o drama, e sai de cena no alvorecer.

Projetos de uma geração

Fizemos parte daquela geração que vislumbrou a utopia das grandes mudanças, quando essas se dissiparam, o poeta-visionário enxergou o heroísmo dos pequenos gestos. Contudo, o risco é inerente ao andamento da vida: em termos simbólicos, toda luta é armada, ainda quando decretamos o armistício.

No final dos anos 1970, enquanto cursávamos Jornalismo na UFBA, editamos o jornal alternativo Une-Versos, catalisador das manifestações literárias. Foram dois anos – 1977-78 – de intenso movimento poético e político, dentro das possibilidades que contávamos à época. A publicação reuniu além de mim e Damário, os poetas Otávio Afonso, Paulo Garcez de Sena, Mirella Marcia, Nildão, que era responsável pela programação visual, e outros escritores, poetas e artistas. Em seguida, publicamos a plaqueta de poemas “Sábado 13 horas”, e fizemos o lançamento na livraria Literarte, que acabava de ser inaugurada e era ponto de encontro dos poetas e escritores baianos.

O livro “Damário Dacruz: um homem, uma surpresa” faz parte da “Coleção Gente da Bahia”, das Edições Alba.

*Marcio Salgado é jornalista e escritor, autor do romance “O filósofo do deserto” (Multifoco, 2017).

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