Eldorado é longe daqui
Marcio Salgado*
Cerca de dez mil quilômetros separam o Brasil da Ucrânia, país do Leste Europeu. Essa distância geográfica é também simbólica – são povos de culturas muito distintas –, mas não assistimos indiferentes à violenta invasão do exército russo àquele país. O sentido de humanidade bate mais forte, e o despropósito dessa guerra sensibiliza a quase todos.
Os brasileiros não estão familiarizados com as guerras e assistem as cenas como se fossem eventos midiáticos que se juntam ao bombardeio de mensagens na internet. Nada se compara aos horrores das guerras, à sua destruição, ao sofrimento e aos traumas que provocam nas populações envolvidas, masos brasileiros são alvo de batalhas reais sangrentas nas periferias das grandes cidades. O Atlas da Violência indica que o país registra uma média de 60 mil mortes violentas a cada ano, às vezes mais, às vezes menos. É um número de guerra, não dá para naturalizar.
Cada qual com o seu drama, é verdade, mas o melhor do ser humano é o que nele vibra, não a indiferença. Com guerras ou sem guerras, hoje no mundo já existe uma grande dificuldade em enxergar o outro, em aceitá-lo na sua alteridade. A Rússia não aceita o país livre que se tornou a Ucrânia após o fim da União Soviética. Em seus delírios de um passado grandioso, o autocrata Putin quer aprisionar os sonhos de liberdade dos ucranianos. Mas não se aprisionam sonhos. Jamais. Os ucranianos têm demonstrado isso ao enfrentar corajosamente uma potência militar como a Rússia. Vale lembrar que o termo autocrata, que se refere aos governantes com poderes absolutos, já definia oficialmente os antigos czares da Rússia.
Ainda que distante da guerra –se é possível abstrair-se das suas cenas trágicas –, a vida cotidiana apresenta-se desde já como uma grande batalha. Viver em sociedade é conviver, para tanto, é necessário observar certos princípios que consideramos éticos. Não fomos nós que os criamos, pois eles preexistem à nossa existência. Também não foram os nossos pais, mas certamente eles não caíram dos céus: foram criados em determinado momento.O vocábulo Ética vem do grego Ethos, e significa modo de ser, caráter. Por aí dá para perceber que ele é bem antigo, mas não velho, pois jamais sai de moda.
É lugar-comum dizer que o brasileiro tem astúcia, embora, no mais das vezes, ele entre nessa história se sentindo a raposa e termine devorado como um cordeiro. O seu destino virou uma grande festa– hoje aprisionada pela pandemia –, mas as contradições são inevitáveis: em um cotidiano marcado pelas leis vorazes do capitalismo periférico, os excluídos são milhões e as demandas sociais se multiplicam. O Estado sinaliza com promessas que não se cumprem. Por aí é possível entender, ao menos em parte, como um país onde predomina o sentido lúdico da vida tornou-se tão violento.
Cito uma historieta do filósofo francês Voltaire (1694-1778), que está no romance “Cândido, ou o otimismo”. Após longa e penosa viagem, Cândido chega ao país de Eldorado e fica abismado com tanta riqueza. Era um lugar abençoado onde haviaouro e alimentos. Após saciar a fome e a sede, o viajante, que tinha gosto pela metafísica, perguntou se não havia no país uma religião. O velho sábio da aldeia ficou espantado com a pergunta; observou que eles não eram um povo ingrato e adoravam a Deus. Não satisfeito, Cândido quis então saber de que modo, em Eldorado, se implorava ao demiurgo. O seu interlocutor respondeu tranquilo: “De maneira nenhuma, nada temos a pedir-lhe;agradecemos sem cessar.”
A lenda nos faz lembrar o lado místico da nossa identidade, que não é imutável e manifesta-se através das mais diversas formas de religiosidade. Contudo, ao contrário da história citada, por aqui se pede muito a Deus. É que nós temos “eldorados” onde populações vivem em condições subumanas, outras que desaparecem nas águas das chuvas. Neste cotidiano de urgências, o brasileiro negocia a sua realidade, enquanto olha para o lado transcendente da vida como o lugar de salvação.
Os dias atuais são propícios para refletir sobre essas questões, bem como sobre as novas formas de relacionar-se com os seres que compõem o nosso habitat natural. As formas de lidar com a natureza também fazem parte de um aprendizado. Infelizmente, estamos atrasados nesse aspecto,ainda mais porque o presidente e seu governo criaram uma coleção de projetos devastadores do meio ambiente.
Entre nós, as coisas têm o seu jeito de andar e desandar. Sem alimentar preconceitos que maltratam a nossa autoestima, a verdade é que vivemos num país onde a realidade costuma apresentar-se com uma contraface mágica. Observamos este aspecto admirados da nossa própria capacidade inventiva. Em sua vã filosofia, o brasileiro crê que pode passar a perna na realidade, mas engana-se. De qualquer forma, viver não é algo que se faça sem riscos ou mesmo sem dramas.
Na vida temos que fazer escolhas. Não buscamos a felicidade no país mágico de Eldorado, mas neste mundo real, cheio de conflitos. Neste mundo Cândido se debateu após ser expulso do paraíso terrestre onde antes vivia. Ele acreditava no “melhor dos mundos possíveis” propalado pelo seu mentor, até que a vida lhe apresentou as mais cruéis adversidades.
Ao final, Cândido encontrou nas palavras de um aldeão que cuidava do seu pomar uma antítese da filosofia que aprendera. Para combater os vícios, o velho turco valorizava o seu trabalho simples. E disse uma bela frase ao final do romance: “Tudo isso está bem dito, mas devemos cultivar nosso jardim.”
* Marcio Salgado é jornalista e escritor