‘Eus’
O pronome pessoal do caso reto da primeira pessoa singular é quem me identifica como ente: EU. Assim me classifica a gramática da língua portuguesa, e me personaliza. No entanto, filosoficamente, olho para mim mesmo e vejo múltiplos seres que me representam. Em verdade, não há uma unidade em minha personalidade como a sociologia aponta, e a biologia confirma. Eu sou muitos. Eu sou ‘eus’. Não posso negar que há um ser bondoso que habita os meus neurônios – Se comove com a dor alheia, e se alegra com a conquista de alguém querido; reparte o pão com o necessitado, e até a roupa do corpo, se necessário, para um ‘seu chegado’. Mas, ao mesmo tempo em que acode o desprovido que lhe toca, fecha os olhos e o coração a um semelhante que desconhece, sem remorso, na mais lavada insensibilidade, como se as coronárias fossem de nylon. Horas há em que me vejo criança, puro e lépido, como o bezerro solto do curral, de bem com a vida, tomando a lida como uma séria brincadeira, como se não houvesse amanhã. Virando a esquina e a página circunstancial, transformo-me no eu ranzinza, burocrático e chato, a resolver pendências e demandas, com a sisudez necessária que a dureza do sistema impõe, destilando por todos os poros tensão, como requer a história do homem adulto na terra. Por vezes sou flagrado sábio, consciencioso, cordato, medindo os passos, polindo as palavras, julgando todas as coisas com critério antes de tomar decisões, ou tornando-me o conselheiro, o ícone do bom senso. No entanto, à revelia, aqui e acolá, salta pela janela o eu otário, vestido de insensatez e adornado pela estultícia, verborreando tolices como um irracional, e, com isso, me metendo em situações vexatórias que trazem prejuízos incalculáveis amiúde. Com certeza, sou da paz, busco o bem, exalo sorriso e distribuo abraços, afago a criança e amparo um idoso, encorpo o time dos ‘deixa-disso’, e até me entrego ao labor da reconciliação dos que contendem. Mas, não sei como, nem de onde, a depender do cenário, emerge do meu íntimo um eu estranho que desconheço, feroz e bizarro a ranger os dentes, maior que minha constituição e me amedronta, pois não o gerencio. A paz e a guerra no mesmo tronco. Há também o eu letrado, inteligente e conhecedor de toda a ciência, detentor de informações mil, capaz de dissertar sobre qualquer assunto em desenvoltura com outro louco, mostrando-me o tal, incapaz de calar-me ante a mais contundente tese apresentada. Mas, não nego, envergonho-me, quando me puxam a capa e cai a máscara, deixando nu o eu ignorante que pouco ou quase nada sabe sobre o muito que a vida traz em seus mistérios. É isso… Eu sou muitos; eu sou eus… Sou santo, sou profano; sou senhor e escravo de mim mesmo; sou do bem e sou bandido; médico e louco… Mas quem não ÉS…?