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Nem com mala preta nem mandinga

Essa história ouvi do Eloy, o clássico zagueiro de área do Esporte Clube Vitória nos idos de 1955, 1956 e 1957, capitão da equipe rubro-negra, onde formava linha de zaga com Valvir, Guta, Nelinho e Jaiminho, tendo como volante o insuperável Pinguela.

Durante o campeonato baiano de 1955, o Vitória foi soberano. Ganhou o 1° turno e chegou ao final do 2° turno com enorme vantagem sobre o seu maior rival, o Esporte Clube Bahia. Restava então, um único jogo com o Guarani, adversário considerado fraco, useiro e vezeiro em perder para o Vitória por placares elásticos, como se diz na gíria futebolística, “um freguês”. A vitória era certa. O esporte Clube Vitória sagrar-se-ia campeão antecipado, eliminando qualquer possibilidade de o Bahia entrar na disputa final, ainda que viesse a fazer bom resultado em seu último jogo a ser disputado, salvo algum lapso de memória, com o Botafogo Sport Club, ― “O mais simpático”, também alcunhado de “Diabo rubro”.

Contudo, obedecendo à máxima: ― “seguro morreu de velho e precavido está vivo até hoje”, foi que Manoel Grosso, o massagista do Vitória, mais conhecido como Mané Grosso, baiano legítimo, adepto da crença afro-brasileira, procurou convencer os jogadores que melhor seria fazer uma “preparação” para garantir bom resultado, num trabalho a ser encomendado à famosa Mãe de Santo, dona de terreiro, lá pelas bandas do subúrbio de Periperi.

E assim acertado, lá se foi a equipe do Vitória para o terreiro da Mãe de Santo do Mané, na tardinha de um dia de semana, três dias antes do jogo com o Guarani.

Naquelas circunstâncias, fico a imaginar o deslocamento para aquela lonjura de Periperi, na década de cinquenta. Deveria ser uma verdadeira aventura ou, melhor dizendo, uma maratona, tanto pela dificuldade do acesso, como pelo enorme sacrifício a que se submeteriam alguns jogadores, diante do fato de que o ritual exigiria que adentrassem pela madrugada, para garantir o sucesso da obrigação, incompatível ainda com as crenças de outros tantos. Mas, pela vitória, tudo valeria a pena.

Pela vitória não, pelo VITÓRIA!

Já era noite alta, quando o ritual teve início. Obedientes à Mãe de Santo, todos os jogadores se despiram. Mané Grosso, com desenvoltura e respeito, amparava os jogadores, tentando passar-lhes confiança.

Nus, foram orientados, dentre outras coisas, a fazerem evoluções sobre pipocas. Em seguida, um a um, se dirigiram a uma camarinha, onde foram recebidos por um Filho de Santo que tinha nas mãos um galo recém-degolado. Ali foram, então, aplicados passes de descarrego, com o bicho ainda sangrando sendo arremessado sobre o peito dos atletas para, em seguida, ser passado, de cima a baixo, pelos seus corpos.

Lembrou Eloy, que o frio era grande naquela noite, não por menos, pois todos estavam pelados, tendo como proteção no corpo, tão somente algumas penas do galináceo, que teimavam em ficar grudadas, não pelo suor, mas pelo sangue do pobre bicho, que lambuzava peitos e pernas daqueles devotados atletas.

Durante o ritual, Vermelho, um ponta que jogava no Vitória, descrente e debochado, pilheriou dizendo baixinho: ― Isso num vai dar certo!

Mané Grosso que estava por perto recriminou com veemência, falando: ― Olha lá, Vermelho. Não brinca que a coisa é séria. Você não respeita e depois, quando chegar no campo tu vai começar a sentir uma coisa estranha nas pernas que não vai nem poder andar, quanto mais jogar bola.

Ao findar o trabalho, a Mãe de Santo orientou aos jogadores para que, no dia do jogo, ao entrarem em campo, não se esquecessem de primeiro pisarem, no gramado, com o pé direito e depois  gritarem: ― Raio de sol, raio de sol, raio de sol, três vezes.

Dia do jogo. O esquadrão entrou em campo sob os aplausos da torcida. Os jogadores correram em direção à arquibancada e, enquanto saudavam a massa de torcedores, todos batiam palmas no ar, gritando três vezes:

― Raio de sol, raio de sol, raio de sol!

O jogo teve início. O vitória fez o primeiro gol, 1X0. Porém, o Guarani empatou: 1X1. O lateral do Guarani cruzou e a bola entrou 2X1. O volante fez um lançamento e a bola foi direto para o gol, 3X1.

Ao final do primeiro tempo, no vestiário, o capitão Eloy, com o seu jeitão de bom mineiro, perguntou ao goleiro;

― Ué Albertino, o que é que está acontecendo para você tomar um gol daquele?

Num sei, quis saltar e não consegui. Até paricia qui tava grudado no chão. E a bola daquele cruzamento não era nem prá ir pru gol. Como é qui aquela bola foi entrar?

O descrente e espirituoso Vermelho, escutando a conversa com a ponta da orelha, completou:

― Eu bem que sabia, eu falei. Aquele negócio de ficar gritando raio de sol, raio de sol, foi prá cegar o coitado do Albertino. Ele sem enxergar a bola!

No segundo tempo, o Guarani fez 4X1, fez 5X1 e mais um para fechar a partida, aplicando um verdadeiro, como se diz nos dias de hoje, chocolate.

Pois é, naquele jogo, o impossível aconteceu. O esporte Clube Vitória perdeu a partida pelo infeliz placar de 6X1 e, com isso, o Bahia teve a sua chance de classificação assegurada naquele 2° turno, habilitando-se a disputar a final com o rival Vitória.

A derrota deu no maior quiproquó. O técnico Pedrinho Rodrigues foi afastado. Entraram em ação Luiz Catharino Gordilho, Alfredo Miguel e Jorge Correia Ribeiro, formando o triunvirato rubro-negro.

Os três assumiram as rédeas do time. Depois do vexame contra o Guarani, ganhar o campeonato tornou-se questão de honra. Decidiram por concentrar os jogadores no 19° Batalhão de Caçadores do Exército, no distante bairro do Cabula ― o famoso e temido 19BC, em plena semana do Carnaval, em preparação para a grande final, a ser disputada numa melhor de três, contra o Esporte Clube Bahia, seu mais ferrenho adversário. Na primeira deu Vitória 3X0, na segunda peleja deu Bahia 2X1, mas no jogo derradeiro o Vitória derrotou o Bahia por 4X3.

Até os dias de hoje, paira a desconfiança de que, assim como aconteceu com o juiz pernambucano, encomendado para garantir o triunfo do tricolor no segundo jogo da final, fato esse comprovado e que, inclusive, resultou na exclusão do árbitro do seu quadro; a mala preta do Bahia, também se esparramou lá, naquele terreiro de Periperi. Contudo, no final, para a felicidade da nação rubro-negra e tristeza da tricolor, o feitiço voltou-se contra o feiticeiro e o VITÓRIA SAGROU-SE CAMPEÃO.

Jair Araújo – escritor

Membro Correspondente da ALACIB – Academia de Letras, Artes e Ciências Brasil, Mariana – MG; Membro efetivo da SPBA – Sociedade Brasileira de Poetas Aldravianistas e do INBRASCIMG – Instituto Brasileiro de Culturas Internacionais – Minas Gerais.

Ilustração: Gentil

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