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O cotidiano e a oralidade no romance de Jolivaldo Freitas

Gerson Brasil
A Peleja dos Zuavos Baianos Contra Dom Pedro, Os Gaúchos e o Satanás, de Jolivaldo Freitas, convida o leitor a um passeio pela oralidade baiana, costumes, crenças, farmacologia, disputas, desavenças e até mortes, sem que se recorra ao denuncismo, ao lugar-comum, e a caricaturas do baianês.
Também se encontra afastada da narrativa a retórica politicamente correta, como acontece em diversos autores, no chamado realismo socialista; assegurando um verniz social politicamente bem-visto, e no entendimento do que é a injustiça social.
No livro, a injustiça é apresentada como um acontecimento cotidiano, não porque ela expresse um estado de exploração e conformismo, e sim dadas as démarches e os enfrentamentos do ordinary people, em prosseguir, seguir adiante, “numa cidade que fazia anos não tinha a presença de alguém para assegurar justiça.
Cada caso demandava uma solução simples, e a maioria foi de disputas por cerca, bichos que sumiam, roupas que sumiam do varal, calotes etc”. A vida cotidiana, embora tutelada pelo estado, não se deixava passivamente seguir as regras e as leis, inventava movimentos, maneiras de ser, mesmo porque o estado estava ausente nos lugares onde era reclamado.
A gente comum, os invisíveis, obtinha o reconhecimento na multidão individualizada, nos apelidos, a marcar o lugar de cada um e lhe assegurando a existência de “Cara de Cavalo”, o padeiro, “Norma Cabaço de Freira” e o astuto “Cabelo de Rato”.
Sem pressa, nem correria, a narrativa faz a ressurreição do ordinary people, restituindo a oralidade quase perdida, em boa parte, dada a coerção imposta pela escrita, no escrutínio de emudecer e organizar o vozerio, dar-lhe um lugar onde pudesse ser contido e responsabilizado. A gramática e a interpretação são a garantia do cumprimento e da obediência da lei e do comportamento.
Mas a oralidade, na forma do texto, tem sua própria gramática, sofisticada, e numa alteração que torna a fala menos dispendiosa e mansa.
Num determinado trecho do livro, o narrador se refere a Graça Campos de Moura Costa, apelido Ni, uma moradora de um dos meretrícios da cidade. E logo adiante, revela que boa parte dos baianos substitui a preposição em por ni. “Vou alí ni Paripe, estava ni Ondina”. Essas falas quase desapareceram, mas quando se faziam ouvir na cidade, marcavam uma pertença, indicavam uma apropriação do cotidiano, nem natural, nem escolástico, mas cultural. Contrariamente ao silêncio da fé nas igrejas, a oralidade também se desmanchava ainda em sussurros nos velórios.
O antropólogo Vivaldo Costa Lima alude a palavra acarajé como “uma forma abreviada ou sincopada de parte do pregão das antigas vendedoras ambulantes dessa iguaria”. Está se referindo às negras nagô.
Destituída de títulos e grafia, o ordinary people guardava os nomes, sons e significados não só para se fazer presente, mas também pela manutenção dos elos sociais e de um certo lustre. Isto está marcado no texto com o apanhando de nomes na composição de “Valdeci, aquela que mora na floresta”, “Lurdes, de boa altura”, “Raimunda, a conselheira”.
O romance traz ainda uma farmacologia envolvendo ensinamentos, métodos e crenças, e sem nenhum aviamento garantidor de que o efeito a ser produzido trará alívio, mas na indicação para espantar o mal, ou se livrar de alguma peste, em forma de doença ou de gente. “Chás, vinho de catuaba, jurubeba, xarope de juá, casca de ovo de ema”. Da mesma forma que os toques dos sinos das igrejas se misturavam à multidão, que reconheciam perigos e alegrias.
O livro está dividido em 8 partes, sendo que contém breves capítulos, o que torna a leitura prazerosa, além de abrigar uma Bahia sem sensualidade e resistências heroicas, mas uma Bahia oitocentistas que chegou até nós no invisível lavador de carro e vendedor de sinaleira. É a esteira, o rastro, dos aguadeiros, barbeiros, oleiros, catadores, “aventureiros e até devedores de alguma coisa”. Ontem como hoje, muito comumente acontece, e no mais das vezes sem que se possa recorrer à justiça, dada a iniquidade do acusado e a volúvel atuação do aparelho judiciário.
Um tema interessante que o narrador traz a limbo é o reconhecimento do filho bastardo, claro, quando advindo de família benquista, ou seja, com nome sobrenome e um dístico. Não é o bastardo mal-agradecido ou esconjurado, que não inspira confiança. Nem o bastardo Edmund, da peça Rei Lear de Shakespeare, que termina matando o Rei e sua filha Cordélia. No caso é o Juiz Jáder Ribeiro, filho bastardo do doutor Henrique Ribeiro Filho. “No final, tempos passados, ninguém mais lembrava se era filho encostado ou não”. Mas no Bahia British Club, o mulato Jáder era aceito, mas muitas vezes confundido como funcionário do clube”. Sem contar que o pai exercia a medicina legal e a abortiva, na cândida presciência da sociedade.
O romance, na narrativa bem precisa e cuidadosa do cotidiano, forjado na oralidade, acena para a Arte de Persuadir de Blaise Pascal, “não definir coisas tão conhecidas por si mesmas que não haja termos mais claros para explicá-la”. Trata-se de uma ficção e chama a atenção a inexistência mimética da tão propalada sensualidade baiana, onde homens e mulheres deixam Baco, Ninfas e Eros aborrecidos e infantilizados.
O historiador Michel de Certeau, pontua que “muitas práticas cotidianas (falar, ler, escrever, circular, fazer compras ou preparar refeições) são do tipo tática. E também de modo mais geral, uma grande parte das ‘maneiras de fazer’: vitória do ‘fraco’ sobre o mais forte‘ (os poderosos, a doença, a violência das coisas ou de uma ordem), pequenos sucessos”.
Fora da militância contra as injustiças sociais (muitas por sinal), no texto a morte não conduz a vitimização, nem a exposição de uma violência bárbara. Se estende pelo amálgama que fundou a sociedade tecida no Sistema Colonial Escravista, até hoje vigente no título de ‘doutor’ e outras honrarias a todos aqueles indicados ou por aproximação, concedida a brancos, pretos, mulatos, pardos, crioulos e cercanias, em instituições ‘funcionais’ na figura de diretores, conselheiros, presidentes, membros, não importa o posto e sim a insígnia.
Ao tratar da morte, o narrador institui o seguinte diálogo, funcional, esclarecedor e admoestativo, na convicção do entendimento. “Aqui para morrer não precisa de inimigos. – Mas o que ele fez de mal? Pelo que sei não tinha nada de seu. – Como saber, meu caro”?
Os Zuavos desfilam no romance e na Guerra do Paraguai, 1864, porque não tinham nada para fazer e a convocação talvez rendesse algum fruto. Mas antes mesmo de enfrentar as balas e os tiros de canhão, inscrevia-se a pindimba, a inveja, o logro; o lugar a ser alcançado, já estava marcado pela dissenção. “
Na observação do narrador, a formação dos Zuavos, a ideia, “teve forte aceitação entre os baianos, que até fizeram doações. Onze companhias foram criadas sob o comando de oficiais negros. Mas, havia uma décima segunda companhia que a história não registra a contento, justamente a que foi comandada por um tal de Gonçalo Cassumba Mbongo Orum. Militar liberto, muito inteligente e esperto que se tornou amigo de Dom Pedro”.
Os Zuavos se arrebentaram na guerra e os poucos que voltaram estavam bem machucados, nada obtiveram, mas o cotidiano da cidade foi em frente. Em 1872, ou seja, oito anos depois, estourou a greve dos ganhadores de rua. Foram 12 dias de paralisação. A mercadoria ficou no porto e as ruas vazias. Dessa vez a guerra aconteceu no cotidiano. Mas isso é outra história. O livro de Jolivaldo Freitas se presta a uma boa leitura e também a um bom roteiro cinematográfico, claro, sem bumbo e efusões. O cotidiano escorre e nada tem de engraçado.

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