Resenha de “Não me deixe só…!”: Um olhar sensível sobre a experiência de mãe e filha durante a pandemia
Em tempos de incertezas e desafios, a literatura surge como um farol capaz de iluminar os caminhos da existência humana. É nesse contexto que a obra “Não me deixe só…!”, de Licia Soares de Souza, publicada pela Editora Mondrongo em 2024, se destaca como um testemunho sensível e profundo sobre a experiência de mãe e filha durante a pandemia de COVID-19.
A professora Bernadette Porto, da Universidade Federal Fluminense, apresenta uma resenha perspicaz e envolvente desta obra, destacando sua relevância no cenário literário contemporâneo. Através de sua análise, somos convidados a refletir sobre temas universais como vulnerabilidade, exiguidade e resistência, que permeiam as páginas deste livro tocante.
Literárias… Professora Bernadette Porto, da Universidade Federal Fluminense resenha a obra
Não me deixe só…!
De Licia Soares de Souza,
Editora Mondrongo, 2024.
Ao longo da história da literatura, epidemias e catástrofes inspiraram autores de diferentes nacionalidades e de diversos contextos históricos. Sensibilizados por algo que ultrapassava sua compreensão, tentaram encontrar em suas obras um sentido capaz de explicar o que era da ordem do não-sentido. No cenário da contemporaneidade, o “imaginário do fim” (GERVAIS, 2009) se nutriu da devastação decorrente da pandemia de covid, responsável por um número incalculável de mortes e pela revisão de valores e posturas sobre os quais se assentavam práticas sociais e nossa representação do mundo.
Refletir sobre eventos catastróficos nos leva a repensar a etimologia: de origem grega, a palavra “katastrophe”, é formada pelo prefixo kata (“para baixo”) e pelo radical strophein (“virar”), o que remete à ideia de reviravolta. Aos olhos do neuropsiquiatra Boris Cyrulnik, “após cada catástrofe, há uma mudança de cultura” e a vida é retomada, mesmo não sendo como antes (2020).
Longe de ser mais um texto inspirado pela pandemia de covid, que embaralhou nossos hábitos, obrigando-nos a recriar nossos gestos, o livro de Lícia Soares de Souza é, antes de tudo, a transmissão de uma experiência singular e coletiva, conhecida por mãe e filha, no meio de atritos e parcerias, distâncias e aproximações. Trata-se do relato de vivências intergeracionais compartilhadas no feminino, no âmbito do huis-clos familiar, espaço reduzido do tête à tête em que se encontram e se confrontam a figura materna – cuja autonomia e mobilidade estão comprometidas – e a filha, “passageira do mundo em dinamismo.” Para além de divergências eventuais, ambas se adaptam às reviravoltas da vida e conseguem dar a volta por cima, reformulando-se diante da nova realidade, sem abrir mão da energia vital que as caracteriza.
Lição de sobrevivência e de resistência, Não me deixe só …! se reveste de um conteúdo pedagógico, moldado pelo afeto presente no ato de cuidar. A prática do cuidado aí se destaca enquanto reversibilidade: para a filha, cuidar equivale a ser cuidada; para a mãe, tornada dependente pelas circunstâncias, cabe aceitar sua fragilidade revelada pela crise sanitária e aceitar ser “maternada” pela filha. Em uma complexa relação dialógica, para a filha, o ato de cuidar corresponde à capacidade de sair para fora de si mesma, de seus projetos acadêmicos e existenciais para afetar e ser afetada por urgências de outra natureza que dizem respeito à ética e ao senso de responsabilidade.
Para enfrentarem interdições que as obrigam a permanecer no confinamento, afastadas de pessoas queridas, constroem uma cumplicidade da resistência, feita não só de pequenas astúcias para driblar o impossível, como também de concessões mútuas, aptas a ressignificar o cotidiano. Nesse contexto imprevisível até então, aprendem a valorizar e a instaurar nova rotina, repleta de hábitos à primeira vista insignificantes, que passam a pautar seu dia a dia.
A obra traz efetiva contribuição para as reflexões em torno do envelhecimento no momento da pandemia. Se todos se sentiam extremamente vulneráveis, eram os idosos que estavam na linha de frente da ameaça letal. Fase da vida considerada improdutiva na ótica da sociedade baseada na competição e na compulsão da produtividade, a velhice – e em particular a das mulheres – é vivenciada, muitas vezes, como uma forma de exclusão. Sensível a esta situação-limite, a filha faz tudo para incluir sua mãe, mulher guerreira do passado, em um presente pleno de desafios e de possíveis sonhos a serem conquistados, pois “a vida sempre pede alegrias e coragem para continuar.” Para tanto, tira partido da bagagem memorial acumulada por sua mãe, que “carregava um fardo de vivências, competências, domínios e ensinamentos.” Lado a lado, as duas personagens reconstituem o tecido esgarçado das lembranças, reunindo fragmentos da existência conservados por cada uma, à sua maneira, dispostos como diferentes peças que completam o tabuleiro movente da memória.
Três palavras-chave atravessam as páginas deste livro: vulnerabilidade, exiguidade e resistência. Assumindo a voz e a prática da resiliência, a filha estimula a mãe a não se deixar abater e a reforçar seu pertencimento à Bahia de todas as crenças, cores e festas (sagradas e profanas). No fim das contas, é a vida que tem a última palavra, arrebatando-as para participar plenamente de seu fluxo ininterrupto.
Ao terminarmos a leitura de Não me deixe só …!, o título continua a ecoar em nós, como se nos convidasse a escolher uma postura acolhedora diante do mundo, a experimentar a paciência, a tolerância e a disponibilidade para o Outro. Em resumo, o relato autobiográfico da autora ressoa no leitor como um passaporte que lhe dá acesso a outros percursos nas searas do que há de mais sensível e verdadeiro no campo do humano.
Bernadette Porto
(Universidade Federal Fluminense)