Talibã “paz e amor”
Grupo radical do Afeganistão usa ferramentas de Relações Públicas para mudar percepção que o mundo tem da sua imagem pública
*João Fortunato
Bastou o governo norte-americano oficializar a retirada de suas forças armadas do Afeganistão para o mundo ter a sensação de que o País, em questão de horas, retrocedeu 20 anos no tempo. Soldados americanos ainda estavam embarcando no aeroporto da capital, Cabul, quando o Talibã assumiu o controle do País. O grupo é velho conhecido do Ocidente, antes mesmo do surgimento de Osama Bin Laden, mentor do ataque às torres gêmeas de Nova York e pretexto para a invasão norte-americana ao País, em 2001. Eles, desde 1996, quando assumiram o poder pela primeira vez, frequentam o noticiário internacional. As atrocidades que cometiam imediatamente viravam notícia, sobretudo contra as mulheres, em razão da aplicação de uma interpretação própria da Lei Islâmica, a Sharia, extremamente rigorosa.
Será que este retrocesso é fato ou apenas sensação de déjà-vu, provocada pela repetição de imagens – homens barbudos, armados até os dentes, ocupando os espaços públicos na capital? Só o tempo poderá dizer.
Por ora, o que se percebe com nitidez é o Talibã tentando gerenciar a percepção pública mundial. Aparentemente estão mais “tolerantes”, inclusive com a mídia, tanto que promoveram uma coletiva de imprensa e, surpreendentemente, permitiram qualquer tipo de pergunta e responderam objetivamente a todas. O porta-voz do grupo parecia bem treinado e dava a impressão de ter as respostas na ponta da língua. Chamou a atenção também a participação das jornalistas, que puderam fazer seus questionamentos sem censura. Mas o trabalho de Relações Públicas do Talibã foi ainda mais adiante: um dirigente do grupo concedeu entrevista ao vivo à TV local, onde foi entrevistado por uma jornalista.
Apesar disso, o Ocidente, com razão, olha com desconfiança para esta versão Talibã “paz & amor”. Não acredita que a sua interpretação radical do Islã tenha mudado, o que significa dizer que a vida da população será difícil e mais ainda para as mulheres. Mas, não se pode esquecer, que vinte anos se passaram e o mundo mudou bastante nesse período. Embora alguns dos antigos dirigentes estejam retornando ao País, novos surgiram durante a ocupação americana e quem sabe com uma “cabeça” um pouco mais moderna. É possível torcer.
Os jornalistas perguntaram sobre como as mulheres seriam tratadas pelo novo regime, se obrigadas a viver como há vinte anos, quando não podiam sair de casa sozinhas, trabalhar, frequentar escolas e obrigadas a usar a Burca, vestimenta que cobre o corpo por inteiro, da cabeça aos pés. A resposta foi direta, sem titubeios: “serão tratadas no limite do Islã”, afirmou o porta-voz, acrescentando que elas poderão seguir com os seus trabalhos fora de casa. Tomara que seja verdade.
O Talibã tem inúmeras razões para usar as ferramentas de Relações Públicas na tentativa de mudar a percepção pública, de mostrar ao mundo que hoje estão mais tolerantes. O País está sem reservas cambiais e, como se não bastasse, ainda sofre com uma grave seca. As dificuldades que despontam no horizonte próximo são grandes e o Afeganistão vai precisar de ajuda humanitária.
O País, como se sabe, tem como vizinhos de fronteiras duas grandes potências, a Rússia e a China, que mantiveram no Afeganistão as suas representações diplomáticas e podem ser importantes aliados não apenas na reconstrução do País, mas também no fortalecimento, se verdadeira, dessa nova imagem que o Talibã quer passar para o mundo. O testemunhal, que a publicidade utiliza com frequência, sempre dá bons resultados. Será preciso esperar um tempo para saber o que representantes da Rússia e China, que permanecem em Cabul, estão vendo e ouvindo, se o Talibã “paz & amor” é realidade ou mais uma história de ficção oriental.
*João Fortunato, jornalista, mestre em Comunicação e Cultura Midiática, professor universitário