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O tempo da vacina e outros

Gerson Brasil

Secretário de Redação da Tribuna

Poucos foram os momentos, em meio a pandemia, de abordagens com alguma cautela e discernimento, como o fez o diretor de emergências da OMS, Michael Ryan. Não só reforçou a responsabilidade coletiva na tentativa de conter o vírus, como também colocou na mesa uma questão pertinente, ou seja, “o que é mais importante, as nossas crianças de volta à escola ou bares e cubes noturnos abertos”?

Ocorre que a letalidade e o domínio incompleto que a ciência tem do covid cria um ambiente de medo e muitas incertezas.  Os mortos, contados às centenas de milhares, foram incorporados ao dia a dia, numa espécie de simulacro de uma familiaridade grosseira, travestida de pragmatismo, a esconder carências e debeidades arrogantes.

A economia acena com o fim do mundo, o que provoca angústia similar à da espera de alguém ou a aparição inesperada de um intruso. A vacina se constitui numa aposta, onde todas as esperanças são depositadas.

Num quadro de incertezas, a contagem do tempo para se vencer o vírus está repartida entre o tempo do vírus (circular?); o tempo da vacina da ciência; o tempo da vacina política, o tempo do cidadão, até quando ele resiste ao isolamento e o tempo histórico – no curto, médio e longo prazos; que medirá os comportamos e as consequências, advindas das decisões tomadas face a política e a economia na conjuntura do ambiente social e cultural. Ou seja, os atos humanos praticados, o que inclui a racionalidade e o aparente absurdo.

Reunir todos esses tempos ou calculá-los tendo como pressuposto uma razão, com o objetivo de sanar o problema, seria necessário nos situarmos numa esfera. Onde todos os pontos estão equidistantes do centro inexistente. Mas não é o caso. Estamos na história, que se escreve com os corpos e as ações resultantes.

Na observação imediata, boa parte da população se adiantou à ciência e o tempo vivido traz consigo uma imunidade subjetiva. Além de ser um bem adquirido, a protege de uma invasão de privacidade, por mais que a civilidade implique no bem comum.

Mas uma parte bem menor da população refuta seguir a maioria e se comporta à maneira aristocrática, do Barão de Charluz – em Sodoma e Gomorra de Proust, no quarto livro, dos sete. Em lugar de se adaptar à vida mundana, a modificava de acordo com seus costumes pessoais.

O tempo da vacina política ignora o tempo da vacina da ciência, e quer fazer coincidir o cálculo eleitoral, com uma possível cura, numa operação de convencimento, que compete com o livro ‘milagroso’ “Como fazer amigos e influenciar pessoas” de Dale Carnegie, publicado pela primeira vez em 1936.

Em uma sociedade que professa a civilidade, com os usos e costumes e também a hierarquia e a regulamentação da vida, tudo deve ser exposto de modo claro e em condições de ser avaliado; salvo as famosos “razões de Estado”, que muitas vezes inclui crimes.

A crença de que a tecnologia resolverá todos os problemas e de que graças a ela o homem está indo de encontro a seus limites não implica que o mesmo já tenha desaparecido e muito menos que questões de vida e morte possam ser resolvidas com discursos e gestos. O Covid de largo estrago queda-se perante água e sabão.

Se hoje, amanhã ou depois, a vacina virá, em que ambiente não se sabe. Mas seja lá qual for incluirá as virtudes, que nunca mudam, de vez em quando algumas esmorecem; e os vícios, benfazejos, sempre engendrando novos que se superpõem aos velhos, como disse o narrador proustiano, “com a mesma virulência irascível e adocicada”. A vacina trará consigo alguma eficácia, mas talvez a comunidade não lhe agrege valor, tornando-a contígua a um motor morto. No Yutube, o esquecido Nat King Cole descansa a voz em Cachito mio.

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