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Piedade, depois do Natal

Jolivaldo Freitas

Escolheu a praça da Piedade. O Natal fora tristíssimo, muito. O pior da sua vida, muito pior. A praça fechada, não sabia, nunca ia. Um naco de buraco nas grades estéticas, obra de famoso artista, Carybé, passado. Passou. Entrou. Sentou. Chovia. O Natal se fazia mais triste, tristíssimo, muito mais. Nem uma alma assinalada na praça. Nem nas ruas e avenida Sete de Setembro. A Piedade tomada pela chuva que desabava como pingentes de teto de igreja fazia dias. Sobre Salvador. Um velho teiú, rabo comprido e sem medo de água, nem pingos, subiu o banco, ao seu lado. Ele explicou ao bicho de áspero couro, de língua para fora, que não era para ser um desatino daquele jeito, tanta chuva, chuva como jamais se viu. A cidade do Salvador. Cidade do Salvador e quem era o Salvador? perguntou ao abelhudo teiú da encharcada praça. E, ele mesmo, claro, respondeu que o Salvador era Ele, O, Jesus. Como chover no dia do natalício do patrono da cidade?

Disse da inexpugnável tristeza de trazia no coração. O pior Natal da sua vida, repetia e o teiú já subindo no encosto do banco molhado, praça úmida. Seus olhos úmidos. Tristeza de parente nenhum, amigos de dezenas e mais dezenas quintuplicadas de anos, de infância, brigados por causa de política. Apratheid. Não mais podiam se suportar e nem adiantava promover neutralidade. Cada amigo querendo posição contra o outros e isso ele não se envolvia. Amigos separados na noite de Natal. E a chuva não parara nem para Papai Noel chegar em seu trenó mágico, imolhável, impermeável.

Tinha filhos, mas os meninos longe. Japão, Austrália, Colômbia. Pé de meia. Sobrevivência. Garimpando vida melhor, embora nunca tivessem conhecido vida ruim. Mas, se bem, não seriam os meninos que fariam seu Natal melhor. Fizeram até pior. Um Natal triste de doer, muito. Até Aprendeu a fazer transferência por Pix e mandara o “presente” natalino para cada um, sem esquecer nenhum. Nem agradeceram e nem mandaram nenhum presente, mimo. Nem aquele de R$ 1,99. Talvez o frete deixasse caro, disse para o teiú que subira no espaldar do banco, velho, o assento. Os meninos só ligaram – gostavam – para o Natal quando ainda meninos; e a casa era uma festa. Gostoso o barulho do papel rasgando, o riso do presente, coisas boas, algo besta, uma lembrancinha, mãe ralhando hora de dormir. Não tinham mais mãe.

Falou que Natal tristíssimo, muito, foi também para quem teve parentes morto nos encharcados. Perdeu casa. Não teve árvore de Natal. Nem milagres de Natal. A chuva insistia. Batia no couro do teiú. Batia na sua capa de náilon. Deu vontade de chorar vendo o animal se arrastando lento, lentamente, vagar, nos pingos da chuva. Já chorara, chuva, desde início de novembro quando passava a assistir filmes natalinos. E chora. Gosta de chorar vendo fitas. O choro chegava esgotado no dia do Natal. A véspera fora tristíssima, muito triste. Melhor ir embora. Havia gripe no ar. Outros bichos. E o teiú esvaeceu no meio da plantação mal cuidada. A praça estava triste…tristíssima, o teiú… Chorou pensando nos filhos e nos amigos que sumiram, aqueles para nunca mais. A praça onde se enforcava gente. Pior Natal. Nunca que havia chorado no dia do Natal. Parecia um filme triste, tristíssimo.

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