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A leitura essencial da poesia

(Resenha do livro “Essência Poética, de Sérgio Mattos) 

Marcio Salgado* 

No belo poema intitulado “Rio”, Sérgio Mattos navega nas águas de um rio imaginário. O verso inicial – “Todo poeta tem um rio!” – anuncia uma verdade interior que em seguida deságua numa ausência, murmurada em tom coloquial: “Quanta falta faz um rio/na poesia de quem nasceu/no litoral?” Note-se que não é na vida, a falta a que ele se refere, mas na poesia. O que não modifica as coisas, em seu aspecto mais profundo, pois a criação reflete o ato de viver.

Não ter de verdade um rio, para o poeta, não chega a ser trágico, se ele pode criar um de fantasia. Todos eles passam, os verdadeiros e os poeticamente criados. Na linguagem poética os sentidos são múltiplos e encerram supostas contradições sem prejuízo da compreensão. O leitor deve encontrá-los no decorrer da sua própria leitura.

Este rio do poeta tem o seu jeito incomum de passar, em termos literários podemos dizer que ele possui o seu ritmo, essencial à poesia. E se assemelha à correnteza da memória, que se faz presente na curva do tempo: “Não tive um rio/Tento criar um rio,/mas na lembrança da minha infância/tenho muita maresia,/maré de vazante, maré de enchente,/Iemanjá levando presente…”

Tomei este poema como ingresso do livro “Essência poética (Poesia de toda a vida)”, de Sérgio Mattos. Como indica o subtítulo, este volume reúne a produção poética do autor em um período de 45 anos. São nove livros de poesia muito bem editados no seu aspecto visual, acompanhados de “Fortuna crítica”, um apanhado de textos sobre o autor e sua obra, assinados por escritores, jornalistas, críticos e professores de literatura.

Coincidência ou não, o poema citado faz parte do livro “Fio condutor”, de 2006. Digamos que o autor tenha proposto aos seus leitores um exercício poético onde se deve percorrer um labirinto. Para percorrê-lo, eles devem encontrar o seu fio de Ariadne.

Todos esses poemas são pequenos mundos feitos de palavras. Na vida cotidiana, elas são uma teia onde o ser humano ergue o seu abrigo. É na linguagem que ele vive, encontra-se e perde-se. Já o poeta faz da linguagem verbal o instrumento do seu labor.

“Com as palavras/o poeta cria imagens,/dá vida ao inanimado,/construindo significados./ — O poema é a pluralidade/da realidade.” Esses versos compõem o poema “O mago”, incluso no livro “Fio condutor”. Não deixa de ser verdadeiro este título, porque poetizar, às vezes, aproxima-se da magia: transforma um sentimento difuso em obra de arte. Por outro lado, este pode ser um ato tão simples, como contemplar a natureza ou caminhar pelas ruas de uma cidade.

O principal neste ato é que o criador possa expressar a sua verdade. É ela que vai conquistar os leitores e guiá-los na leitura da sua obra. “Essência poética”, de Sérgio Mattos, revela momentos e sentimentos verdadeiros do poeta. De um modo geral, a sua obra alcança o leitor pela simplicidade dos versos. Nela, poeta e jornalista dialogam sobre as coisas do cotidiano e os dramas existenciais, sem abrir mão do sentido estético, a exemplo do poema “Comunicação”, que faz parte do livro “As teias do mundo” (1973) que descortina esta edição: “O mundo fatigado cai numa máquina de/jornal/onde uma angústia permanente em/busca da verdade/a todos cega: apenas a notícia existe.”

Essa consciência de que precisa dar uma forma aos fatos e sentimentos é fundamental para o êxito do poeta. No ambiente de trabalho do jornalista, vez por outra ele recolhe temas para a sua criação. Como diz ao final o poema citado: “– a comunicação mágica está no corpo/destroçado das manchetes!”

No mundo atual, dominado pelo consumismo e pelas tecnologias, a poesia mantém-se viva, embora seja uma das mais antigas formas de linguagem artística e comunicativa. As epopéias dominavam o cenário na antiguidade, antes mesmo da filosofia, contando em versos as histórias dos heróis e dos mitos. Já os poetas modernos narram os conflitos a partir da sua individualidade.

As primeiras páginas de “Essência poética” trazem o depoimento de Sérgio Mattos sobre a sua compreensão da arte literária e o seu processo criativo, que ele considera como de uma eterna aprendizagem. O autor observa: “Com uma linguagem simples, sem falsos apelos de sublimidade, procuro falar do homem e de suas aflições, do amor, dos sonhos, decepções e das nossas aspirações.”

O autor teve alguns dos seus livros traduzidos para o inglês, entre eles “O vigia do tempo”(1977) e “Já não canto, choro (1980). O volume agora publicado traz os prefácios das edições em português e inglês desses livros. A seção “Fortuna crítica”, com resenhas e prefácios das publicações originais, fecha esta edição, contendo a produção poética do autor.

Sérgio Mattos é professor universitário, poeta e escritor, com vários trabalhos publicados, especialmente nas áreas de Comunicação Social e Jornalismo. Nasceu em Fortaleza, em 1948, mas mudou-se com a família para Salvador, ainda criança.  Foi professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e atualmente leciona na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Além de “Essência poética: poesia de toda a vida” (GRD Edições, 2011), publicou, entre outros livros, “Jornalismo, fonte e opinião” (Quarteto Editora, 2011), “O guerreiro midiático: biografia de José Marques de Melo” (Vozes, 2010), “O contexto midiático (Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 2009). É autor da crônica de costumes “Os funerais de dona Camila (Edição do autor, 2008), além da alentada autobiografia “Vida privada no contexto público” (Quarteto Editora, 2015).

*Marcio Salgado é jornalista e escritor, autor, entre outros livros, do romance “O Filósofo do Deserto” (Multifoco, 2017).

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