ColunistasDestaques

A odisseia dos ucranianos

Marcio Salgado*

As denúncias de crimes de guerra se multiplicam na invasão da Ucrânia. O governo do país contabilizou mais de quinhentos civis mortos em Kiev e nos subúrbios da capital. As imagens de corpos jogados nas ruas e os fatos relatados pelos sobreviventes são aterradores e serão analisadas pelos organismos internacionais de direitos humanos. Os crimes de guerra foram delimitados nas Convenções de Genebra, em 1949, e ratificados pelos Estados membros da Organização das Nações Unidas (ONU).

Esta é uma guerra injusta e insana – como outras guerras –, contra um país que optou por viver em liberdade, sem entregar-se aos algozes que hoje tentam massacrá-lo. Não começou agora, é verdade, em 2014 a península da Crimeia, que então pertencia à Ucrânia, foi invadida e anexada ao território russo. Os EUA e a União Europeia protestaram e ameaçaram em vão com sanções. Mas não há comparação possível com o que acontece hoje, pois àquela época o então presidente da Ucrânia agia como um fantoche de Putin, e ao mundo aquele ato pareceu uma invasão consentida.

Os ucranianos têm demonstrado extrema coragem para enfrentar uma potência militar como a Rússia, muito superior em número de soldados e tecnologia de guerra. Eles resistiram heroicamente, embora tenham sofrido imensas perdas materiais e humanas.

Vez em quando são divulgadas análises geopolíticas que tentam justificar essa violenta agressão por conta de uma identificação da Ucrânia com os países ocidentais da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Argumentam ainda que os EUA invadem países mundo afora e ninguém reage; que o embargo à Cuba já dura seis décadas; que se a agressão fossea um país da África silenciavam. São verdades consabidas, que não servem de argumentos contra as sanções comerciais impostas à Rússia nem justificamessa guerra. Por que os ucranianos têm que se alinhar à Rússia? Estamos em pleno século 21, a autodeterminação do país não pode ser violada dessa forma.

A Rússia hoje não é um exemplo de liberdade, muito pelo contrário. A sua população não acompanha os noticiários da guerra, pelo simples fato de que foram proibidos pelo governo, também não exerce o seu direito à livre manifestação e expressão. Em Moscou, milhares de manifestantes foram presos. O principal líder de oposição ao governo Putin, Alexei Navalny, foi recentemente condenado a nove anos de prisão.Antes foi envenenado, mas conseguiu recuperar-se na Alemanha, quando retornou à Rússia foi preso. É difícil fazer oposição lá, a vida é por um fio.

Já o presidente Volodymyr Zelensky age como um líder, não fugiu de Kiev, e, com sua capacidade de reação tornou-se o protagonista improvável do cenário político. Não da guerra, pois ele não a inventou, e tem consciência de que trava uma luta de Davi contra Golias. Zelensky tenta abrir espaços para um acordo com o presidente russo, enquanto dialoga como os chefes de Estados do Ocidente. Mais adiante, Putin – o senhor dessa guerra –, será levado ao Tribunal Penal Internacional.

Uma imagem comovente, entre tantas outras da invasão da Ucrânia, mostrava o pequeno Odisseu, na altura dos seus oito anos, deslocando-se numa rodovia entre centenas de refugiados rumo à fronteira da Polônia. Levava uma mochila numa mão e o que poderia ser a sua identidade, na outra. E chorava. Aparentemente, encontrava-se só naquele mundo de aflições que as guerras provocam. Uma semana após a divulgação das imagens que circularam o mundo nas mídias e redes sociais, surgiram notícias de que a sua mãe o aguardava adiante. Não era uma notícia falsa, havia uma ponta de esperança no encontro entre mãe e filho.

Odisseo é um nome lendário na poesia de todos os tempos. Encontra-se no poema épico “Odisseia”, do grego Homero, que viveu por volta do século 8 a.C.,e conta o seu retorno ao reino de Ítaca, após a Guerra de Troia. Esta guerra foi um conflito sangrento entre gregos e troianos que durou dez anos. O cerco a Troia está no outro poema homérico intitulado “Ilíada”. É nele que se descreve a famosa história do Cavalo de Troia que foi ofertado pelos gregos aos seus inimigos e revelou-se a chave para a vitória grega. Dentro do imenso cavalo estavam centenas de soldados que saíram na madrugada, enquanto os troianos dormiam embriagados com uma falsa rendição dos guerreiros gregos.

A Ucrânia precisa do seu cavalo de Troia para vencer uma guerra invencível em termos reais. O ataque de Vladimir Putin foi desde sempre um delírio dos tempos de grandeza dos czares da Rússia. Talvez ele não desperte jamais, e, neste caso, é o mundo inteiro que viverá o seu pesadelo.

Além das perdas humanas e do sofrimento de milhões de refugiados,a guerra vai provocar dificuldades comerciais em um contexto de economia globalizada, escassez de alimentos e alteração nos índices do aquecimento global. Os países da Europa serão os mais atingidos, inclusive por conta da importação do gás russo. O autocrata Putin, que governa com poderes absolutos, será levado às barras dos tribunais internacionais acusado de crimes contra a humanidade, mas as consequências desse processo são demoradas e incertas.

*Marcio Salgado é jornalista e escritor

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *