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Poética dos povos originários

Marcio Salgado*

O escritor português Valter Hugo Mãe inspirou-se nos povos originários da Amazônia para criar o seu novo romance “As doenças do Brasil” (Biblioteca Azul, 2021). Nele, o guerreiro abaeté, filho do estupro de uma índia por um homem branco, vive um grande conflito ao descobrir-se diferente dos demais. Trata-se de um ato de violência que se repete historicamente de outros modos, e não deveria jamais ser naturalizado.

A história é contada a partir da perspectiva abaeté – uma comunidade imaginária –, numa linguagem com todas as licenças poéticas, pois, conforme o autor, escrever é o “caminho para uma coisa nova, como se a própria língua se tornasseestrangeira”.

O título do romance é uma referência ao “Sermão da visitação de Nossa Senhora”, de padre Antônio Vieira (1608-1697), como mostra a extensa epígrafedo livro. Nela, o filósofo alerta para “a causa original das doenças do Brasil: tomar o alheio, cobiças, interesses, ganhos e conveniências particulares, por onde a justiça se não guarda, e o Estado se perde.” Como se vê, vem dos tempos remotos esses desencontros entre o sentido de justiça que a população reclama e os privilégios do Estado brasileiro.

O nome do guerreiro é Honra;quando nasceu libertou o corpo damãe, e tudo assemelhava-se à normalidade. “O corpo liberto de Boa Espanto era belo e essa beleza era apreciada e havia muita gratidão entre um e outro…” Contudo, a expectativa de pertencimento do guerreiro logo se desfaz num sinal de estranhamento. No decorrer da história, ele vai tentar resolver o seu conflito vingando-se da “fera branca” que exterminou o seu povo.

Nos limites da comunidade todos celebravam a presença de Honra e o guiavam nos ritos de passagem. “Ser abaeté resultava em graça.”Apesar disso, o guerreiro era inteiro revolta, até que encontra outro desafortunado na floresta, o negro Meio da Noite, que fugira dos castigos impostos aos seus semelhantes escravizados. Relutantes com a nova amizade, atentos aos sinais, os guerreirosjuntam as forças para enfrentar os desafios na floresta. Esses eram sempre relacionados à invasão do seu território e às suas trágicas consequências. “As ilhas dos abaeté estavam finalmente encontradas, eram no caminho da cobiça branca, haveriam de ser sempre incomodadas.”

O mundo criado pelo autor une os guerreiros Honra e Meio da Noite num propósito de resistência contra os invasores no rapto das suas riquezas materiais e humanas. A sua verdade poética não fica tão distante de outra verdade, a histórica, embora a sua ficção não se prenda aos aspectos históricos para justificar-se. Ela existe na linguagem inventiva que se estabelece, como a se reconhecer no plano puramente simbólico, A repetição dos trechos dá um tom de mantra indígena. Não é sem motivo que os verbos “entoar” e “abeirar” tornam-se tão recorrentes. Os da comunidade abaeté entoam os seus presságios: “Terás de entoar como quem liberta a onça…” No trecho que se repete: “O inimigo mais abeirou. Tua lembrança abeira o inimigo.”

O autor, que é português, escreveu um livro sobre o Brasil, portanto, esteve sempre no limiar de duas formas distintas de expressar-se numa mesma língua. Optou então, como é uma característica dos seus escritos, por estabelecer uma linguagem muito particular.

Quando foi contemplado com o Prêmio Literário José Saramago, em 2007, com o romance “O remorso de Baltazar Serapião”, o Nobel português de literatura falou que o seu livro era um “tsunami, não no sentido destrutivo, mas de força”, e que ler os seus escritos era como “assistir a um novo parto da língua portuguesa.”

Outras tribos

Vale observar que a temática indígena já inspirou autores brasileiros em obras de reconhecido valor literário. O romance indianista produzido no Brasil no século XIX teve José de Alencar como expoente maior dessa vertente. Os seus romances “O Guarani” (1857) e “Iracema” (1865) abordam a convivência entre índios e brancos a partir do “mito do bom selvagem”, onde o índio é leal e honrado, contudo, os conflitos são apaziguados a favor dos invasores e do seu projeto civilizatório.

A partir de um episódio central –o estupro de uma índia abaeté –, o romance de Valter Hugo Mãe coloca em evidência, sem eufemismo, a violência contra as etnias formadoras do Brasil. Podemos refletir sobre as consequências históricas desse ato criminoso: o racismo estrutural e a violência contra as mulheres são dois componentes que surgemdas relaçõesperversas impostasà época da colonização e que se estendem pelos séculos.Hoje as estatísticas mostram as desigualdades sociais que se perpetuaram sem conserto, enquanto as elites brasileiras contribuíamregiamente para a sua permanência. Tudo isso cabe nas abordagens de algumas disciplinas, mas aqui estamos diante de um mundo inventado, feito de palavras, com seus cantos, cheiros e dramas.

A imagem oficial que Portugal construiu sobre as navegações e suas conquistas pelo mundo, certamente não é esta que o autor retrata no livro “As doenças do Brasil”, que se assemelha a uma denúncia de crimes jamais prescritos porque são parte da história do país.Nele o colonialismo perde a sua aura e as suas máscaras, mas por meio de um estilo poético e muitas metáforas.

A obra, dedicada ao líder indígena Ailton Krenak, traz prefácio da escritora Conceição Evaristo. Ela afirma que esta narrativa “traça uma ferrenha peleja de sentidos entre a existência do eu colonizador e do outro colonizado, que não aceita ser inventado pelo invasor.”

Valter Hugo Mãe éainda autor dos romances “O filho de mil homens” (2011) e “A máquina de fazer espanhóis” (2010), dentre outros livros.

*Marcio Salgado é jornalista e escritor.

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