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Quando as traças criaram asas

Semióloga Lícia Soares de Souza

Espaço cultural: Resenha crítica por Maysa Miranda*

“Quando as traças criaram asas» , de Licia Soares de Souza (Editora Autografia), se abre com uma travessia da Amazônia , de dois jovens engajados a preservar a democracia O destino deles é a cidade do Panamá, onde vão encontrar pesquisadores do Canada e da Alemanha para entregar relatórios de uma perigosa zoonose que tomou de assalto o pais, no período pós-pandêmico de covid-19. Neste período, o governo de direita, que assombrou o país é reeleito, e as paisagens distópicas acentuam as práticas de violência vinculadas às ideias de eugenia, negação do saber e do conhecimento, gentrificação, e toda exclusão advinda de um desenvolvimento desigual de base neoliberal.

A maior parte da ação se passa em Salvador, onde um médico utópico resolve fazer experiencias genéticas com o mosquito da dengue, na UFBa., para produzir o que as multinacionais caracterizam como os “mosquitos do bem”. Estes seriam destinados a eliminar os mosquitos transmissores da doença , um experimento não aprovado no Brasil por ser muito perigoso e incontrolável. Errando no manejo genético, Dr, Marcio produz um inseto transgênico, mescla do AEDES com traças, gerando uma das zoonoses mais violentas da historia do país. As traças voam, devoram o amido dos livros e atacam as pessoas causando uma morte rápida por hemorragia e falta de respiração.

Professores, editores, livreiros formam um grupo de resistência pronto para lutar contra o governo, e os casarões da velha Salvador servem como esconderijos onde os militantes se encontram para tentar desmoronar o poder.

O romance se desenrola como uma polifonia musical, literária e cultural, na qual canções populares, textos literários de autores nacionais e internacionais, louvores afro-brasileiros e salmos bíblicos (transtextualizados por poetas conhecidos na cena internacional, como Wilde e Baudelaire), teatro popular e teatro de Oficina são citados para ilustrar a riqueza artística da população em geral, que se apavora diante do receio de perder todo este arsenal criativo com a violência do sistema.

O curioso é que, nesta obra, como diz o prefaciador, Professor Gildeci Leite (UNEB), uma adaptação de um famoso provérbio popular parece ter sido materializada: “ Deus não da asas a cobras”. Dá, entretanto, a um novo inseto transgênico que aparece como a alegoria de um regime profundamente opressor que arrasa vidas, projetos e sonhos. Quem destrói livros nos tira o ar, nos sangra até a morte, diz Gildeci.

A ficção dialoga com o presente histórico numa relação de cumplicidade tão estreita que revela de forma contundente os movimentos sígnicos que configuram o real contemporâneo. O ser mais importante da trama é o Caminho, ideia do poeta indígena cantante argentino Yupanki que diz que “ o ser humano é a Terra que caminha”. Um ser humano guarda a memória de todo caminho percorrido nos 13, 7 bilhões de anos do processo de evolução. Em Salvador, os ambulantes, que também se juntam aos resistentes, guardam a memória de travessias sertanejas, na poeira e no calor, na fome e na sede. Outros tem a memória das mobilidades atlânticas , nos porões dos navios tumbeiros. No tráfico de escravos.

O cuidado com a cultura e o saber, erudito, popular e ancestral, ricamente descritos em diferentes momentos da narrativa, torna a leitura prazerosa. Mas, como é um livro questionador da sociedade atual, cada vez mais desigual, ultrapassa a função estética, para proporcionar ao leitor uma análise crítica da vida na qual estamos mergulhados. Vamos trocar nossos livros por arquivos virtuais? Vamos nos tornar wikipédianos lendo apenas em telas o que devemos aprender de nossa realidade sócio-histórica? E se os textos das telas forem modificados segundo ordens de governantes mal-intencionados? São questões que tem que ser levadas às escolas, nesse momento de virada de aprendizado da leitura, em que temos que selecionar abordagens críticas de percepção do mundo.

As traças aladas são verdadeiras imagens de um gênero insólito que se situa entre o fantástico e o distópico, mostrando ao leitor que o mundo que nos cerca não tem mais nenhuma base determinada. Tudo pode acontecer! Não é recomendável se fiar em fatos concretos, nem em noticias midiáticas, nem em redes sociais, muito menos em conversas fiadas. O que a vida exige agora é observação e cuidado, leitura criteriosa.

Mas, diante de tanta destruição e dor, existe o momento de esperança na vida. O amor de um casal gera uma menina, legitima filha de OXUM, que, segundo ainda Gildeci Leite, soube bloquear as investidas de poder dos orixás masculinos, protegendo os pendrives ,(com informações e denuncias,) que seria enviado à comunidade internacional na tentativa de impedir a continuação da necropolitica no Brasil. Na mitologia afro-brasileira, OXUM ameaçou, inclusive, o fim da procriação. Este livro é uma promessa da moderna literatura brasileira que tem como principal compromisso o prazer da leitura, mas também alertar para os perigos do mundo politico, capazes de aniquilar uma civilização.

Licia Soares de Souza é professora emérita da UNEB, colaboradora na UFBa., e professora associada da Universidade do Québec em Montreal onde fez o doutorado em Semiologia. Publicou muitos ensaios teóricos sobre a semiótica da literatura, da televisão, e do cinema. Recebeu a maior recompensa do governo brasileiro a professores que se destacam no exterior, divulgando a cultura brasileira: É oficial do Rio Branco : Ubique Patriae Memor.

*Maysa Miranda é professora de francês aposentada do Estado da Bahia.

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