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Solitárias divagações

“A linguagem criou a palavra solidão para expressar a dor de estar sozinho. E criou a palavra solitude para expressar a glória de estar sozinho” (Tillich)  

Durante o período inicial do recomendado isolamento horizontal, entre outros entretenimentos, eu tive a grata satisfação de assistir muitos filmes interessantes. Um deles foi “Into The Wild.”, cujo roteiro é a adaptação do caso real vivido pelo solitário Cristopher McCandeless que, no início dos anos noventa, soube utilizar a solidão como meio de libertação dos seus conflitos existenciais para conquistar a felicidade.

Dei-me conta de que os solitários são eremitas por opção. Indivíduos que se isolam da sociedade e mergulham dentro de si, na busca de encontrarem ou mesmo construírem caminhos para não padecerem no corrosivo estado de solidão. Fisicamente sós, se empenham em preencher o vazio espiritual, procurando perceber o sentido da vida através da observação do mundo real, pelas nesgas das janelas interiores que se permitem abri-las. Travam batalhas para se libertarem dos clamores da alma, reflexionando sobre o sentido das suas existências.

Estão, a percorrer o labirinto dos seus conflitos conectando-se com o ambiente, em companhia deles próprios. São pessoas simples como as que vivem no campo, permitindo-se sentir o frescor da brisa noturna a transportar o perfume das flores e ouvir o gorjear dos pássaros. Seres que, ao amanhecer, se encantam com o mistério das gotas de orvalho.

Os solitários buscam solucionar as amarguras, colocando-se como observadores de si próprios diante do mundo, evitando atribuir a culpa das suas inquietações aos outros. São, portanto, indivíduos que constroem pontes de dentro para fora, e não o contrário. Agem como as crisálidas a libertarem-se dos casulos para, atingindo a fase adulta, voarem livres e independentes. São prisioneiros que descobrem ter a capacidade de confeccionar as chaves capazes de abrirem as grades do eu.

Portanto, não se posicionam como encarcerados sem perspectiva de libertação. Estes são comportamentos característicos dos acometidos pela solidão. Dos que não conseguem percebê-la como um estado de espírito transitório, um momento que pode significar a oportunidade do encontro consigo, possível de lhes acenar uma rota de fuga das suas dores.

Os solitários assumem uma linha de análise e pensamento extrospectivo. Movimentam-se como agentes ativos, indivíduos com necessidade e vontade, além de enorme faculdade de adaptação ao meio social. Mesmo quando não concordam com os princípios, os valores e os hábitos culturais construídos pela sociedade. Resistem em cultivar o sentimento de que o mundo é que tem a obrigação de entendê-los, aceitá-los e integrá-los, custe o que custar. Blindam-se para não permitirem serem cooptados pelas coisas mundanas e, tampouco, pela solidão destruidora da autoestima.

Iludem-se os que pensam que os solitários vivem em permanente estado de solidão!

Os solitários se aproveitam dos momentos de solidão para alçarem voos. São criaturas possuidoras de força interior, de porções de rebeldia e audácia, suficientes para quebrarem regras. Veem a solidão como um desafio para alcançar libertação. São autocríticos o suficiente para mergulharem em reflexões, sem sentimentos de culpa, sem vitimizações.

Não se coadunam com as coisas do mundo material, consumista, competitivo, cada vez mais individualista, onde a vaidade dos títulos e das honrarias são exigências para se chegar ao topo do reconhecimento secular. Por isso, quase sempre são incompreendidos e passam a fazer parte do restrito grupo de aventureiros e lunáticos, assim considerados pela sociedade. Desprendidos de tais valores, das ambições materiais e dos prazeres efêmeros, muitos solitários, geralmente, optam por mergulhar na espiritualidade, na filosofia metafísica e nas doutrinas transcendentais do Oriente. O que importa verdadeiramente é que, de uma forma ou de outra, não abrem mão de serem felizes. Provam, assim, que o bem-viver, o bem-estar e o conforto da paz interior, não se encontram atrelados ao ter.

Podemos registrar como grande exemplo, o do jovem Matthieu Ricard, filho do ilustre filósofo Jean François Ravel, que abandonou promissora carreira de cientista, na área da biologia molecular, para se tornar monge tibetano e ser considerado o homem mais feliz do mundo. Epíteto este, concedido após estudos realizados em seu cérebro por cientistas americanos da Universidade de Wisconsin.

Nestes dias confusos quando, pela imposição pandêmica, nos encontramos isolados, muitas pessoas se veem impregnadas por uma estranha melancolia, ainda que convivendo com familiares e com todo o aparato tecnológico que possibilita o estabelecimento de convivência virtual. Um sinal de que, ao contrário dos solitários, muitas pessoas não são capazes de viver consigo mesmas. Quem não é capaz de conviver consigo torna a convivência com o próximo dificultosa. Por isso, são mais felizes os solitários que realizaram o mergulho profundo dentro de si para alcançar o topo da montanha existencial. Os que conseguiram adquirir a compreensão do essencial e, com isso, a sabedoria e significado do seu papel no mundo. Quem é feliz irradia paz e felicidade.

“A felicidade só é real quando é dividida.”. Esta é a preciosa mensagem deixada pelo solitário Cristopher McCandless, personagem biografado pelo escritor Jon Krakauer no livro “Into The Wild” que deu origem ao filme do mesmo nome.

Jair Araújo – escritor

Membro Correspondente da ALACIB – Academia de Letras, Artes e Ciências Brasil, Mariana/MG.
Membro efetivo da SBPA – Sociedade Brasileira de Poetas Aldravianistas

jairaraujo@globo.com

2 thoughts on “Solitárias divagações

  • Acácia Assis Ribeiro dos Santos

    Maravilhosa análise do mergulho no “EU“.

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  • Jair Araújo, você é capaz de traduzir pra com palavras simples , ora com metáforas inéditas o que vai na alma de muita gente, inclusive na minha. Amei seu texto e Me vi nele. Ora solitária , ora feliz nas minhas reflexões. Dias enriquecedores… dias de desânimo, mas sobretudo dias de Fé e de partilha. Que Deus nos abençoe e guarde de todo mal!

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