Salvador

Tribunal de Justiça julga se investigação da própria PM sobre letalidade policial é inconstitucional no mesmo dia que Chacina da Gamboa completa 1 ano

O Tribunal de Justiça da Bahia – TJ/BA julga, nesta quarta-feira (01), a inconstitucionalidade da Instrução Normativa 001/2019. Esta IN modificou o formato de investigação das mortes decorrentes da atividade policial em serviço, que antes eram investigados pela Polícia Civil, e desde 08 de julho de 2019 são apurados pela própria PM através da Corregedoria, por meio do IPM – Inquérito Policial Militar.

Esta pauta tem ligação direta com casos de letalidade policial no estado da Bahia, como a Chacina da Gamboa, que completa neste mesmo dia um ano que três jovens negros foram mortos pela Rondesp. Apesar da Corregedoria da Secretaria de Segurança Pública do estado recomendar abertura de processo contra os agentes envolvidos no caso, a decisão do Comando da PM foi que não houve excessos ou motivo para investigar a atuação dos policiais envolvidos.

Sobre a Instrução Normativa

Em 08 de julho de 2019 foi editada a Instrução Normativa Conjunta nº 01/2019 da Secretaria de Segurança Pública, do Comando da Polícia Militar, do Comando do Corpo de Bombeiros, do Departamento de Polícia Técnica e da Polícia Civil.

A Instrução Normativa alterou não só o formato de apuração das mortes decorrentes da atividade policial em serviço, os chamados Autos de Resistência, que antes eram investigados pela Polícia Civil, e desde julho de 2019 são apurados pela própria Polícia Militar através da Corregedoria, por meio do IPM – Inquérito Policial Militar. Tal decisão na prática impôs restrições à investigação das mortes de civis causadas por PMs.

A IN 001/2019 traz diversas inovações em matéria penal, através de dispositivo infraconstitucional, retirando a agência da Polícia Civil em proceder investigações de homicídios cometidos por policial militar em serviço.

Ademais, a IN 01/2019 ratifica aquelas situações em que o policial mata em serviço, mas se justifica “de livre e espontânea vontade” o homicídio cometido, dispensando o procedimento investigatório, o que é um verdadeiro incentivo para que os policiais permaneçam matando em serviço, já que basta a justificativa do PM para sua conduta ser abonada.

Indo além, criou barreiras ao hierarquizar os sujeitos competentes para solicitar a abertura de Investigação civil: estabelecendo que, em casos de homicídios ou lesões provocadas por policiais militares contra civis, a abertura de inquérito na Polícia Civil estará condicionada ao requerimento do Ministério Público, Secretário de Segurança Pública ou Delegado Geral da Policia Civil.

“É possível levantar a hipótese de só aquelas situações de alta repercussão social serão consideradas como merecedoras de alguma atenção da parte da Corregedoria da PM/BA. Enquanto isso, nada é feito para diminuição dos índices de letalidade policial, conduta já há  muito legalizada por ato infraconstitucional pela legislação baiana”, conforme afirma Marcele de Oliveira, integrante do IDEAS – Assessoria Popular.

Em resumo, no âmbito da Polícia Militar pouco (ou nada) se tem feito para a diminuição dos homicídios contra civis cometidos por seus servidores. Ao revés, criam-se improvisos legislativos que podem até retirar qualquer possibilidade de investigação dessas mortes, bastando apenas a justificativa do policial.

Exemplo recente disso é a situação do caso Gamboa, onde o Corregedor-Geral recomendou a instauração de Procedimento Administrativo para apuração da conduta policial. No caso foi detectado que “há uma série de indícios de que as mortes não foram justificadas”, bem como que as armas utilizadas pelos PMs estavam “perfeito estado de funcionamento no momento da realização das condutas investigadas”. Demonstrando um uso desproporcional da força por parte dos quatro policiais na operação, que estavam equipados com submetralhadoras e pistolas de calibre .40.

Por sua vez, duas das três armas supostamente atribuídas às vítimas apresentavam avarias que impossibilitariam que qualquer disparo fosse efetuado. De acordo com o IPM, uma das armas se encontrava com a trava do percussor inoperante e sem a mola do tirante do gatilho, “prejudicando a produção de disparo”, o que só era possível “mediante a retenção manual do tirante do gatilho”.

Sobre o Processo

Fruto de incidência da sociedade civil e da Defensoria Pública no tocante à inconstitucionalidade da Instrução Normativa e em diálogo com o Ministério Público em 16 de agosto de 2021, o MP ingressou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade que tramita sobre o Processo Número: 8026325-26.2021.8.05.0000 no TJ/BA.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade está na pauta de julgamento de hoje no Pleno do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia.

“A instrução normativa 01/2019 traz diversos pontos extremamente controversos e inconstitucionais, motivo pelo qual entendemos que ela deve ser revogada. Dentre os artigos que consideramos equivocados, está a restrição da investigação pela polícia civil no caso de mortes cometidas contra civis por policiais militares, pois viola o artigo 144 da Constituição. Além disso, principalmente no interior do Estado, essa investigação realizada somente no âmbito da polícia militar é bastante problemática, pois os policiais são colegas de atuação: tanto o que está sendo investigado quanto o que atua na investigação. A Defensoria Pública da Bahia atuou em diversas frentes pela revogação dessa normativa, que está em vigor desde 2019. Esperamos que o julgamento seja concluído e norma considerada inconstitucional e ilegal.”

– Livia Almeida,  Defensora Pública Estadual e Coordenadora da Especializada de Direitos Humanos da DPE/BA

“A sociedade civil na data do marco de uma não da chacina da Gamboa de Baixo (01.03.2023), vem rememorar que a IN 01/2019 foi o alicerce de sustentação, para que o Comando da Polícia Militar discordando do Parecer da Corregedoria Geral da Secretaria de Segurança Pública, tivesse condições de sustentar o entendimento de que não houve excessos ou ilegalidade, na atuação dos Policiais envolvidos na Morte dos Jovens na Chacina da Gamboa. Tal entendimento do Comando Geral da PM/BA explicita o Corporativismo da Corporação e contribuiu para que a Bahia ocupe por quatro anos consecutivos a liderança do ranking de mortes violentas no Brasil, 5.124 vidas ceifadas em 2022, uma fatia de 12,5% de todos os casos no Brasil: 41.069.”

– Wagner Moreira, Coordenador do IDEAS – Assessoria Popular.

A Chacina da Gamboa

Uma intervenção policial tirou a vida dos jovens Alexandre Santos dos Reis, Cleverson Guimarães e Patrick Souza Sapucaia na madrugada do dia 01 de março. Os relatos das testemunhas informam que os policiais já chegaram atirando na comunidade, apesar das mães e moradores terem implorado para que Alexandre, Cleverson e Patrick não fossem mortos.

No período de oitiva na Corregedoria, testemunhas relataram que os policiais chegaram na comunidade atirando para cima e falando em tom de deboche para eles irem “até a mídia”. Chama atenção o fato de que um dos jovens havia sido torturado no ano anterior pelo mesmo policial que participou da operação que vitimou os três jovens na Gamboa em 2022.

Desde então, os familiares, amigos e comunidade da Gamboa de Baixo, apesar do sofrimento e traumas deixados pela perda desses jovens, têm se articulado clamando por justiça e para que não aconteçam mais operações violentas do Estado no território da Gamboa.

A Chacina da Gamboa ocorreu 7 anos depois da Chacina do Cabula. As Chacinas ocorridas, no primeiro e no último ano de Governo Rui Costa marcam a relação com do Governo com o Genocídio do povo negro em curso. Há uma blindagem da Polícia Militar para seguir com o modus operandi, de operações letais, discursos contraditórios, investigações inconclusas e policiais mantidos em serviço, apesar das ameaças aos familiares e aos moradores dos territórios.

A Campanha Março por Memória e Justiça faz arte das práticas de resistência e memória legadas, à base da vida dos meninos da Vila Moisés, de Davi Fiuza, de Pedro Henrique, de Geovani Mascarenhas, de Rafael e Rodrigo Nascimento Rodrigues, de Alisson Silva, até os jovens da Gamboa de Baixo (Cleverson Guimaraes, Patrick Sapucaia e Alexandre dos Santos) e de diversos outros casos, corriqueiramente tidos como isolados, conduziu até este momento de luto, memória e estratégias de incidência política e luta por justiça contra a letalidade policial e o genocídio do povo negro.

Campanha #MarçoPorMemóriaEJustiça

O IDEAS Assessoria Popular lança junto com a Associação de Moradores Amigos de Gegê da Gamboa de Baixo a Campanha Março Por Memória e Justiça. Ao longo do mês, ações serão realizadas para marcar um ano da Chacina da Gamboa. Na última semana, um curta metragem sobre o caso será lançado no canal do youtube do IDEAS  uma publicação com análise de dados coletados sobre mortes decorrentes de ação policial no estado da Bahia ficará disponível no site da instituição.O Governo do estado não disponibiliza informações a respeito dos homicídios praticados durante operações policiais de forma transparente, o que dificulta a compreensão das dinâmicas de violência no estado. Por esta razão, o IDEAS Assessoria Popular divulga, pela segunda vez, um apanhado de dados encontrados em notícias dadas por veículos de comunicação a respeito das pessoas mortas pela polícia militar em Salvador, Região Metropolitana e cidades com mais de 100 mil habitantes, no intuito de contribuir para uma política de Segurança Pública baseada em evidências.

Sobre o IDEAS Assessoria Popular

O IDEAS é uma organização baiana que desenvolve estratégias de mobilização, incidência e articulação que estimulem atores locais a denunciar e combater violações de direitos calcadas na guerra às drogas, na criminalização da pobreza e no negro como inimigo declarado.

Na imagem, familiares e representantes da sociedade civil que acompanham o caso da Chacina da Gamboa participam do julgamento do TJ/BA sobre a Instrução Normativa. Foto: Diogo Andrade

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