Três despertadores e a contradição virtuosa
Gerson Brasil, jornalista e escritor
Para Jolivaldo Freitas
O terceiro despertador estava acostumado com a reação, mas desta vez foi surpreendido com o linguajar rude e assimétrico com a expressão facial. Alcançou não só a cômoda e a cama, como todas as paredes do quarto e a estante. Os livros não se aborreceram, sabiam como reagir. Sumindo, enquanto a busca desesperada só aumentava o fosso entre retirá-los da estante e permanecerem ocultos entre tomos de dicionários e obras que se impõem à curiosidade, ao prazer e ao conhecimento. Indispensáveis, mas temerárias.
A impertinência do tempo ditada pelo despertador, sempre solícito e com a cumplicidade da faxineira, no esmero da limpeza e no modo de posicioná-lo na cômoda, subiu degraus quando se percebeu que a mesma tinha chegado. Agora o aborrecimento iria ser dividido entre os afazeres domésticos e com os ponteiros, a indicar às vezes tempo feliz, em outras ocasiões endiabrado; mas tinha aqueles intervalos em que não se sabe se descer o elevador é o fim do mundo, ou a vista graciosa de pernas e outras geometrias cambiantes, mas de igual fervor.
A faxineira não competia com o terceiro despertador, e nem com o primeiro e nem com o segundo. Tinha sua própria hora de estar presente, assim como fazem os alunos nas classes iniciantes dos estudos.
Tinha rogado aos armários e utensílios domésticos não contestá-la ou fazer cara feia, ou mudar de lugar inesperadamente. “Seu lugar é aqui, eu já determinei e desconheço a praga do esquecimento. Claro, sei de que há razões que ultrapassam as coisas, mas são puras invencionices tomadas pelos incrédulos como sobrenaturais”.
Assim como a geometria não muda de forma, a todo instante, por capricho, moveis e objetos permanecem sempre nos seus devidos lugares, simbolizam algo, mas não lhes é dada a pertinência de falar, só por filiações longínquas a serem lembradas em determinadas ocasiões. O relógio que pertenceu à respeitada Isabel. O testemunho de uma vida feliz, mas amante conscienciosa e indelével; e não uma cortesã, como Ana Theroigne, descrita por Henrique de Kock, a distribuir tantos beijos como punhaladas, e mantendo sobre os lábios o laborioso vinho e os espirros do sangue.
A obediência da faxineira, o dever a cumprir dispensava Aladim e sua lâmpada. Mero intrujão, fora-da-lei. Às vezes uma opinião, distraidamente, era recebida como préstimo e reconhecimento pelo trabalho executado, o que encorajava a perfeição exaustiva e irritante. Adelaide, frequentadora assídua, bem como a aliança na mão esquerda, um dia foi embora. “Por mais que se limpe haverá sempre sujeira, suspeito ser um castigo, e como sou seguidora vou dobrar a esquina. Ser “Senhor” é uma coisa, aturar caprichos beira a estupidez. Há camas sossegadas, cortinas a filtrar a luz e ambiente silente.
O segundo despertador tinha a função de induzí-lo a uma taxionomia (às vezes ficava atrapalhado, nada fazia, mas tinha a certeza de que fizera. A sobra executava sua função). Era anotado o que deveria acontecer até o fim do dia, quando as luzes são acesas, como costume e para diversão das crianças, que temem o escuro. Daí em diante, os acontecimentos eram manobras, ostentações, cautelas, prazeres, (não se pode inferir se lícito ou ilícito. O prazer não admite adjetivações). Aconteciam também desconfianças, recriminações – “fui burro em não ter aceitado o acordo, agora perderei mais dinheiro. O consolo fica por conta de ver novamente Clarice andar sem fazer ruído e estar presente, mesmo quando estou a sós com Idalgo. Um negociador hábil, com o caráter de quem trapaceia nas cartas”.
O primeiro despertador era insurreto. Comprou-o numa loja de fundo de galeria, na mão de um homem gordo, sisudo e olhos de vigia. A curiosidade dos visitantes era despertada, porque os objetos estavam dispostos de modo aleatório. Um busto de alguém, mas sem inscrição, na companhia de uma bola de vidro encimada por um macaco, com olhos de vidro e o rabo cortado. Quem sabe tenha tentado fugir e lhe trancaram a astúcia. O vendedor mostrou que o despertador funcionava, marcava horas corretamente, não falseava a verdade, e fez uma demonstração, colocando-o ao lado de um relógio de pulso com os dois tempos correndo emparelhados. Mas nem sempre a demonstração e a razão convencem-no. Claro, há sempre a desconfiança de estar sendo enganado, principalmente quando se trata do tempo. Certa vez viu algumas crianças abrindo um relógio para ver o tempo passar e ficou impressionado com a decisão tomada e a ousadia à margem da racionalidade familiar e de quem se dispusesse a olhar. “A mesa, a cadeira, a cama são inexpugnáveis, mas o tempo que vou me dedicar a alguma coisa não é sólido e basta isso para encontramos confusões ou beijos inesperados. Os três despertadores me dão pistas sobre o que acontecerá, mas ainda há a faxineira com prognósticos de possibilidades, sem as quais seria impossível seguir adiante, mas quando não se fazem honradas e virtuosas, além da raiva, a crença é rebaixada a um mero palpite, o que torna a raiva raivosa”.
A moça da loja queria me vender uma piteira. Tenho duas, como também três pares de sapatos, seis máquinas fotográficas, algumas têm nostalgia dos cliques. É sempre bom comparar as fotografias de diversas câmeras, para saber se a alma continua fiel, ou se o envelhecimento das coisas está no tempo certo, ou se existe discrepância entre uma lente e outra, ou se os objetos trapacearam. A vendedora colocou um cigarro na piteira e distribui fumaça aos vãos. Braços cruzados, pernas roliças acompanhando; continuou a fumar. Perguntei se não tinha medo de doenças pulmonares; respondeu que a piteira acomodava o prazer e a medicina à perfeição de quem vê ambos. Já não fumava há algum tempo, porém me deu uma piteira retirada da vitrine e um cigarro. No primeiro instante não sabia como me portar, mas na quarta puxada da fumaça, não houve resistência e a graciosidade da vendedora e da piteira me levaram aos três despertadores. “São úteis, mas há quem veja superstição, desperdício, objeção, exagero e contradição, mas como disse Blaise Pascal, o “excesso de contradições produz a verdade”. Negar, crer, e descuidos constantes também lavam a verdade”. Comprei a piteira. Os cigarros quem sabe se encarreguem de se fazer presentes, não como colegiais e sim como adultos. Não vou bajulá-los.