ColunistasDestaques

As greves dos entregadores por aplicativo: campo de disputas sociais para o reconhecimento do vínculo de emprego

Por Sara Costa e Victória Vilas Boas

As transformações no mundo do trabalho engendradas pela inserção das tecnologias de informação e comunicação (TIC) deram palco para “novas” formas de relações laborais, como a gig economy (economia de bicos, em tradução livre). A partir desse modo de gerência da força de trabalho, as empresas estruturam um controle direto sobre o processo produtivo e subordinam os trabalhadores, forjando, através da retórica de autonomia do trabalhador, a negação do vínculo empregatício, e, portanto, desvencilhando-se dos encargos laborais imputáveis.

 Este processo é conhecido como assalariamento disfarçado e está presente no ramo de delivery com as principais empresas da área no país atualmente: iFood, Rappi e Uber Eats. Elas utilizam diversos métodos de controle e gestão dos seus entregadores colocando-os em condições laborais de baixa e instável remuneração, bloqueios sem justificativa, desligamentos arbitrários e dívidas indevidas, entre outros.

Ainda assim, as empresas alegam uma relação de parceria com os entregadores, escondendo a real natureza do trabalho e sujeitando-os às condições precárias de labor. Neste cenário somado à pandemia da COVID-19, os entregadores por aplicativos, enquadrados nas atividades essenciais, organizaram-se para denunciar e opôr-se aos descasos das companhias.

Nos últimos meses, estes trabalhadores têm realizado manifestações nas maiores cidades brasileiras, expondo os riscos assumidos cotidianamente e reivindicando melhorias nas condições de trabalho. Essas mobilizações também giraram em torno da ausência ou insuficiência das medidas de proteção que as empresas alegam fornecer contra a infecção da COVID-19, como por exemplo materiais de higiene, equipamentos de proteção individual e auxílio financeiro aos infectados.

Após diversas manifestações dispersas pelo país, parte dos entregadores organizaram uma greve nacional, convocando esses trabalhadores para uma paralisação de um dia, nomeada como “Breque dos Apps”. Até o presente momento, aconteceram duas paralisações unificadas, nos dias 01 e 25 de julho. Os entregadores que aderiram ao “Breque” recusaram as entregas e muitos se concentraram em pontos específicos nas grandes cidades, como São Paulo, Brasília, Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Essas duas mobilizações também contaram com a participação e apoio dos consumidores que não realizaram pedidos nos dias de greve, além de avaliarem negativamente as empresas nas plataformas Play Store e Apple Store.

Os pontos centrais defendidos pelos entregadores em ambos os “Breques” foram: aumento da taxa mínima de entrega, reajuste anual dos valores das entregas, fim dos bloqueios e desligamentos sem aviso prévio, e fornecimento de equipamentos de segurança individual (EPI) além de auxílio financeiro para casos de contaminação da COVID-19. Ainda que a pauta das reivindicações não tenha incluído o reconhecimento do vínculo empregatício, a mobilização para lutar contra as condições precárias de trabalho é um grande passo dos entregadores.

A pesquisa realizada pelo projeto “Caminhos do Trabalho” da Universidade Federal da Bahia (UFBA) em conjunto com o Ministério Público do Trabalho (MPT) , com 103 entregadores por aplicativo, nas 5 regiões do Brasil, apurou que 55% dos entrevistados não gostariam de ter a Carteira de Trabalho assinada. Dentre estes, 81,6% dos que apresentaram o motivo acreditam na piora dos rendimentos e no receio perder a flexibilidade de trabalho. Entretanto, a pesquisa demonstrou que os entrevistados trabalham em média 64,4h por semana, ultrapassando mais de 20h semanais da jornada normal, além de 70% deles trabalharem 6 ou 7 dias por semana.

Além disso, tendo como base o rendimento líquido mensal, 44% dos entrevistados conseguem menos que um salário mínimo e 85% menos que dois salários mínimos.

Nesse sentido, embora a maioria dos entrevistados que não querem a formalização do contrato laboral tenha receio de perder a flexibilidade e reduzir a remuneração, os resultados obtidos apontam o contrário nas condições deste trabalho. Segundo a PNAD Covid, os entregadores com Carteira assinada têm rendimentos superiores aos contratados como autônomos (PNAD Covid), seja antes (8% acima), e ainda mais durante a pandemia (56% superior). Isso sem contar os demais direitos da CLT que aumentam essa renda (férias, décimo terceiro, FGTS).

Além disso, em relação à saúde e segurança do trabalho, de acordo com a pesquisa da UFBA, apenas 6,6% dos entrevistados declararam receber assistência da empresa no caso de acidentes, em contrapartida, 63,9% não receberam nenhum tipo de suporte da empresa, e ainda 8,2% foram bloqueados após o incidente.

Há uma grande divergência no comparativo entre os entregadores que utilizam moto ou bicicleta para as entregas no que tange a questão da formalização do vínculo de emprego: 61,4% dos que utilizam moto não gostariam, enquanto 64,5% dos que utilizam bicicleta disseram sim ou talvez. De acordo com a pesquisa da UFBA, as tarifas médias declaradas pelos entrevistados são menores para os bikers (R$4,98) em relação aos motoboys (R$7,30).

No contexto da pandemia, a maior parte (95,6%) dos entregadores motofretistas notaram diminuição ou não variação da tarifa mínima, e 86,7% dos bikers tiveram a mesma percepção.

Em outros países da América Latina, igualmente houveram mobilizações de trabalhadores plataformizados. No México, em 30 de junho deste ano, entregadores da Uber e Didi realizaram manifestações por seus direitos. As empresas ofereceram apoio contra a infecção a COVID-19, mas não houve mudanças dos direitos sociais que ajudassem a enfrentar a pandemia, mantendo as mesmas condições precárias de trabalho.

Segundo uma pesquisa do Instituto de Estudos sobre desigualdade do país, mais da metade (62%) dos entregadores sofreram acidentes durante o labor, embora apenas 7% deles receberam auxílio da empresa. Na Argentina, a justiça derrubou liminares que condenavam as empresas a conceder auxílio financeiro aos entregadores infectados pela doença. Enquanto na Colômbia, o judiciário negou-se a analisar os casos, em sua maioria envolvendo migrantes da Venezuela.

As mobilizações dos últimos meses são de suma importância para tornar visível a realidade deste trabalho precarizado, no entanto, o debate sobre o assalariamento disfarçado também deve estar no centro das articulações. Embora as reivindicações propostas nas greves dos entregadores sejam justas e relevantes, necessita-se aprofundar as demandas para desmascarar a natureza da relação de emprego.

A partir do reconhecimento do vínculo empregatício, os trabalhadores estarão automaticamente cobertos pelo regime CLT e, por consequência, terão seus direitos laborais assegurados com simultânea melhora de suas condições de trabalho.

Na Espanha, a justiça do trabalho tem se posicionado majoritariamente a favor do reconhecimento do vínculo de emprego dos entregadores por aplicativo, como é o caso de sentenças do Tribunal de Justiça de Madri, da Catalunha, e de Castilla e Léon.

No Brasil, apesar da forte tendência à negação dos pedidos de vínculo empregatício, como a primeira e até então única decisão do Tribunal Superior de Justiça (TST) anulando o acórdão regional que deferiu o vínculo de um motorista da Uber, já existem decisões judiciais que reconhecem o vínculo empregatício de entregadores da Rappi , Loggi e iFood e motoristas da Uber e 99 .

Estas sentenças estão pautadas na justificativa da existência dos requisitos fáticos para o estabelecimento do vínculo, sejam eles a pessoalidade da relação, a onerosidade, não eventualidade do labor e a subordinação do trabalhador.

Do ponto de vista da legislação trabalhista brasileira, os meios telemáticos estão enquadrados nos critérios de subordinação jurídica e, portanto, equivalem à subordinação clássica. Assim, percebe-se o campo de disputas políticas e sociais que se constitui o Direito do Trabalho, bem como sua importância para a criação e manutenção de uma sociedade justa e igualitária.

*Sara Costa – Pesquisadora do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC/UFBA), Graduanda em Economia pela Faculdade de Economia da UFBA, e projeto Caminhos do Trabalho (MPT/UFBA).

*Victória Vilas Boas – Pesquisadora do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC/UFBA), Graduanda em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, e projeto Caminhos do Trabalho (MPT/UFBA)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *