ColunistasDestaques

COVID-19 e o Direito do Trabalho: dinâmica brasileira e internacional

Sara Costa[1] e Victória Vilas Boas[2]
No atual cenário do mundo do trabalho, novas denominações surgem para designar as transformações nas relações laborais ao redor do mundo. Permeadas pelas tecnologias de informação e comunicação (TCI), aparecem o crowd work, on demand work, digital labour, entre outros. A gig economy, por exemplo, constitui-se dentro de uma lógica em que vários trabalhadores supostamente autônomos, concorrem entre si por tarefas sob demanda, sem uma jornada fixa, e cuja remuneração seja apenas por cada atividade realizada, sob direção e organização das empresas. Assim, as companhias conseguem cortar custos, já que não formalizam esses trabalhadores enquanto empregados, e, portanto, burlam a legislação trabalhista. A natureza dessas relações, a partir da tentativa de negação do vínculo empregatício, via a contratação de trabalhadores como prestadores de serviços autônomos, ainda que subordinados às ordens da empresa, não é inovadora. Dessa forma, o uso das TCIs apenas potencializa o controle das empresas sobre os trabalhadores, os quais são constantemente monitorados pelos dados produzidos via GPS. É o caso dos entregadores por aplicativo, como das empresas Uber Eats, Rappi e iFood.
Esses entregadores são desassistidos por qualquer direito trabalhista, e na situação de pandemia do COVID-19, os problemas que eles já enfrentam diariamente são agravados. A constante negação das empresas leva ao desespero àqueles que não possuem outra fonte de renda, o que segundo a pesquisa da Aliança Bike do Perfil dos Entregadores Ciclistas, significa 86% dos bike entregadores por aplicativo. O auxílio emergencial do Governo Federal para trabalhadores informais, embora possa ser requerido por esses entregadores, juridicamente, não deveria ser necessário, caso as companhias assumissem sua responsabilidade com os direitos laborais. Além disso, a quantia destinada pelo Governo Federal é insuficiente, pois não garante a sobrevivência dos trabalhadores, dado que corresponde a quase a metade de um salário mínimo. O panorama mundial está escancarando essas práticas ao mostrar como esses trabalhadores, enquanto elo mais frágil, não conseguem sobreviver dignamente sem a estrutura do Direito do Trabalho.
Segundo o site da Uber, os motoristas ou entregadores parceiros que forem diagnosticados com COVID-19 serão assistidos financeiramente por 14 dias, baseado na sua média semanal de ganhos nos últimos três meses, considerados a partir da data de solicitação do auxílio. Os trabalhadores também podem pedir reembolso por uma compra de álcool em gel antisséptico de até R$20,00. A Rappi, embora não evidencie as medidas adotadas no site da empresa, alega estar realizando a distribuição de material de limpeza para os entregadores. Já o iFood divulgou oficialmente, além da distribuição de álcool em gel a 70% e de materiais informativos acerca do novo coronavírus, a criação de um Fundo de 2 milhões de reais para dar assistência aos entregadores, com um valor mínimo de R$100 por entregador, não especificando o valor máximo. A irônica diferença é que o fundo de assistência do iFood destinado aos restaurantes é 25 vezes maior do que o dos entregadores. Para receber a assistência, o entregador, ao solicitar o afastamento, ficará com a conta automaticamente inativa por 14 dias, e deve enviar as evidências que comprovem a necessidade, em um prazo de 30 dias.
As empresas de entrega Uber, Rappi e iFood recorreram a ativação do serviço de entrega sem contato, onde os entregadores deixam o pedido na porta do cliente, e recebem a remuneração pelo aplicativo, sem que ambas as partes tenham contato direto. No entanto, esse modelo de entrega é solicitado pelo cliente, ou seja, o trabalhador está à mercê da escolha do usuário.
Nos Estados Unidos, a empresa de delivery DoorDash, que também está inserida na gig economy, disse disponibilizar gratuitamente desinfetantes para mãos e luvas aos trabalhadores, porém cobram uma taxa de frete superior a US$10, cujo ônus recai totalmente sobre os trabalhadores. O surpreendente é que a DoorDash paga apenas US$2 por trabalho realizado pelos seus entregadores. Ou seja, uma entrega custa US$10 para esses trabalhadores receberem material de higienização, mas quando eles realizam o serviço de frete são remunerados com apenas US$2. A partir disso, os entregadores também começam a questionar se o auxílio financeiro alegado pela DoorDash para aqueles que forem contaminados ou precisarem ficar em quarentena também é verídico, e até onde os trabalhadores poderão confiar nas declarações da empresa.
No contexto internacional, o Fairwork, em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), coletou informações sobre como as empresas estão agindo para atenuar os riscos dos trabalhadores da gig economy. Segundo o Fairwork, há evidências de que na Alemanha, os trabalhadores da Liferando ficaram sabendo das novas políticas através das mídias sociais, ao invés da plataforma da empresa. De acordo com os dados coletados neste estudo, no geral, as respostas dadas pelas companhias são insuficientes, elas investem muito em dizer aos clientes como estão protegendo os trabalhadores, sem realmente informar os próprios trabalhadores.
Uma das questões levantadas pelos próprios trabalhadores é que para receber o auxílio financeiro das empresas, eles precisam de um teste positivo para o COVID-19. No entanto, muitos deles não estão tendo acesso aos testes, são subnotificados, ou até mesmo devem ficar em isolamento social, mesmo que não infectados, pois pertencem ou moram com pessoas do grupo de risco. Mesmo com o anúncio do auxílio financeiro, os trabalhadores ficam com medo de serem desligados da plataforma, e perderem a sua única fonte de renda. Por isso, muitos continuam se arriscando nas ruas.
No Brasil, em meio a esse contexto, no dia 04 de abril, houve uma decisão em primeira instância da Ação Civil Pública (ACP) movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) contra o iFood[, determinando assistência aos entregadores, como: proteções que garantam a saúde, a segurança no trabalho e uma assistência financeira no valor de um salário mínimo àqueles que integram o grupo de risco ou que necessitem do distanciamento social. Considerando estas medidas de urgência sujeitas a multa. Entretanto, em 06 de abril, em resposta imediata, a decisão em segunda instância do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 2ª região de São Paulo foi de suspender a liminar, pautados no argumento de que os entregadores são meros usuários da plataforma, não existindo vínculo empregatício. Nesse sentido, uma parte da Justiça do Trabalho no Brasil segue a lógica da negação do assalariamento, diferentemente de países como os Estados Unidos, por exemplo.
De acordo com a legislação do Assembly Bill 5 (AB5) da Califórnia, os trabalhadores de empresas como Uber, Lyft e Postmates são classificados enquanto empregados, e, portanto, estão cobertos por todos os direitos trabalhistas, incluindo, auxílio doença. Ainda assim, o CEO da Uber enviou uma carta ao presidente dos Estados Unidos pedindo medidas de proteção e benefícios para seus trabalhadores nesse contexto da pandemia, como planos de saúde. Para além disso, ele reivindica a criação de uma terceira classificação dos trabalhadores, um status entre empregados e prestadores de serviços, ou seja, há uma persistente tentativa de distanciar os motoristas e entregadores da Uber da noção de trabalhadores assalariados. Além da constante negação do vínculo empregatício, a empresa joga para o Estado a responsabilidade pelos direitos laborais dos seus trabalhadores.
Em resumo, os trabalhadores encontram-se, em meio a pandemia, em condição de extrema vulnerabilidade, desassistidos dos seus direitos fundamentais, ao passo que as empresas transferem os custos, os riscos e as responsabilidades àqueles rotulados como “autônomos”. O reconhecimento do vínculo empregatício, enquanto papel do Direito do Trabalho, é essencial para assegurar condições de trabalho digna a todos os trabalhadores, pondo limites à exploração da classe trabalhadora.
[1] Graduanda em Ciências Econômicas pela Faculdade de Economia da UFBA, pesquisadora do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC/ UFBA) e do projeto Caminhos do Trabalho (MPT/UFBA)
[2] Graduanda em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, pesquisadora do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC/UFBA) e projeto Caminhos do Trabalho (MPT/UFBA)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *