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Não esqueça os fósforos. Fósforos? Sim, os fósforos

Miúda, não dava para ouvir, só aparecia nas janelas, mas logo veio o barulho e as explosões, como nos filmes de guerra. O telhado da casa levava surra. Contrariou deuses?  Não era de confiança? Cometera erro? Sempre protegera, e bem, a casa, mas agora havia dúvida se serviria de abrigo, depois de mais de 30 anos; com alguns remendos e fuligem, adotada pela admiração da vizinhança e de quem passava pelo local. Como a chuva fazia muito barulho, ao descer a ladeira, e o vidro da janela estava embaçado, difícil afirmar se era um menino, ou um embrulho que acenava, como se estivesse numa roda- gigante em disparada; por dissimulação ou para encantar os mesmos deuses que haviam castigado o telhado?

Você ouviu? A parede estalou. Como estalou? Pintamos na semana passada e olhe como está bonita, esse amarelo meteria inveja a certos girassóis, esses pequenos frisos sempre causaram medo a você, suponho reminiscência da infância ou da igreja, com as volutas observando-o todo domingo, e a família atenta ao latim do padre. Não era preciso, nem exigido interpretar o que se dizia, e sim deixar entrar na alma o som das palavras e a fé.

As volutas, sim, tinham rachaduras, porque quando elas chegaram, não havia chuva, não havia sol, não havia relógio e o tempo, fora as colheitas, abrigava-se sobre adivinhações oníricas. Hoje, quando chove, você fica admoestado, como se as intempéries do tempo fossem obrigadas a dar explicações ou escrever tratados para ensinar como conhecê-las, qual a interpretação exata, e como se comportar diante da chuva, trovão, relâmpago, assobio, ranger de portas, estalo de paredes e de assoalhos. O grego Artedimoro não jogava no bicho, mas intuía que trovoadas sem relâmpagos “indicam perfídias e ciladas; algo inesperado”.

Assoalhos metem medo. Talvez você tenha escutado uma tábua estalar. Não se pode observá-los a toda hora, porque eles ficam embaixo dos pés, escondidos, e somem com qualquer coisa e ainda se tornam o esconderijo de seres estranhos que sobem pela cabeceira da cama, e se não estamos atentos pode acontecer uma desgraça.

O mundo ficou moderno e você ficou medroso e científico, tudo tem de ser medido e calculado, e o diabo da estatística serve para justificar a obra que é ruína. A camisa mal passada e até mesmo o desembarque cívico do cidadão daquela mulher desejada por todos e trocada por outra, mas com validade já vencida, na observação impertinente de portas e janelas.

As paredes estão ficando úmidas, mas não será por desespero, amizade ou consolo ao telhado que levou sova da chuva. Logo as lágrimas se vão e vou passar ferro numa toalha para melhor agasalhar as paredes. Bem fez aquela mulher ali na pintura. Está de sombrinha, o tempo não destoa e as flores combinam com o vestido. Prudência é importante.

Noto que a água subiu os três batentes da casa e cinicamente está dizendo: adivinhe quem veio para jantar? Não vou abrir a porta. Fecharei as duas bandas das janelas e há panos e toalhas suficientes para deter a água que passa por debaixo da porta. Não reze, por favor, já tenho de aturar sua física “pesquisei”. O verbo estudar foi substituído pelo “pesquisar”, a ciência se transformou num apêndice, algo incômodo, assim como o sexo. Alguém me confidenciou que dispõe de três: “um para as manhãs, outra para as tardes e o terceiro para colóquios e palestras. Às vezes me canso dos três, bebo água com açúcar e tomo uma das pílulas recomendadas pelo médico, sempre olhando para minhas coxas”.

Não ouço mais o barulho da ladeira, descendo de mãos dadas com a água. Ladeiras servem para isso, descer e subir. As paredes continuam a soluçar, perderam um pouco da tinta, ou seja, deixaram de ser bonitas e agora poucos vão admirá-las. Nem toda noiva é cobiçada, mas todas vivem o momento de Vênus, sempre eternizadas nos álbuns. Algumas ficam noivas várias vezes, anseiam se tornarem comentários, mas isso não abole a mentira. Não é possível se transformar num mito (só quem desfrutou o privilégio de se eternizar foi Elizabeth Taylor, casou sete vezes, duas com o mesmo marido, Richard Burton).

Vou abrir a porta, pouco sobrou da ladeira. Se agasalhe bem, leve o guarda-chuva. O tempo também é sabedoria, embora a Meteorologia reine soberba. Cuidado com os buracos e o lamaçal e não esqueça os fósforos. Fósforos? Sim, os fósforos.

Gerson Brasil
Secretário de Redação da Tribuna da Bahia

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