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Os “negacionistas” não diferem tanto assim de nosotros

Gerson Brasil

 Secretário de Redação da Tribuna da Bahia

Para Guto Amoedo

Os “negacionistas” da covid (neologismo, uma espécie de vulgata da discordância) estão sendo combatidos com duras medidas pelo Estado, num arsenal de restrições racionais, objetivas, que os tornam irracionais e os empurram para fora do campo da “natureza humana”. Essa essência tão difícil de ser apreendida, desde que o século XVII reivindicou os signos e as armas para defini-la, com a instauração do pensamento científico, substituindo a teologia e as forças da natureza pela ciência, na pretensão de dar conta da vida. Até então, uma vida correta e boa deveria estar de acordo com a vontade de deus.

Os “negacionistas” não se confundem com os passageiros da nau dos insensatos, a grosso modo, os indesejáveis dos séculos XVI e XVII, pestilentos, sem teto, feiticeiros e circunvizinhos, que eram obrigados a vagar pelo mundo, enquanto a razão se consolidava, médica e juridicamente, e via os pobres não mais a alma carente de deus e sim inoportunos. Um problema social e econômico.

Os “negacionistas”, de “essência humana” diferente de nosotros, não são tão diferentes assim, porque neles habitam boa porção do proletariado, o lúmpen, médicos, professores, dentistas, e um amplo espectro de profissões que exigem a racionalidade para exibir a inclusão social e econômica na sociedade. Mas, mesmo assim, inspiram uma desrazão inaceitável.

Abordá-los com as ferramentas da psicologia, da biologia, da linguística, da história, da filosofia, da lógica, não garante um resultado objetivo, da mesma forma que falhamos quando nos propusemos a investigar o homem racional, suas intempéries, conquistas e barbáries. Mesmo com a superação das superstições, o deísmo, os deuses, a “natureza humana” encabula, ou não sabemos abarcá-la?

Mas todo esse conhecimento científico e tecnológico, que parece querer engolir o homem com algoritmos, carece de uma explicação racional, uma crença capaz de tornar científico os medos, as desconfianças, a “irracionalidade” e desvarios, como também a capacidade do homem amar, de se apaixonar e de cometer suicídio.

Termos nos livrados de deus como produtor da vida e do homem e adotado o modo de produção material da vida como a parte mais relevante da condição humana foi um avanço memorável; bem como os progressos da medicina, da engenharia, das matemáticas, que nos livraram de doenças, espichando a duração da vida, da mesma forma possibilitando construções que vencem a natureza e engendram riquezas e conforto.

Os “negacionistas”, uma das partes mais visíveis da covid, que também pertencem à “condição humana”, parecem estar próximos da jovem Hester Prynne, personagem do romance de Nathaniel Hawthorne, que, por ser adúltera, carregou a letra A bordada em seu peito, como expiação pelo pecado. A Letra Escarlate.

Seja lá qual for o problema “cabeludo” da” humanidade”, sempre clama-se para a ciência resolvê-lo, e de boa fé acredita-se que é possível, mas, como a crença não é racional, a certeza é tão consistente como um mingau; alimenta, é gostoso, de farinha láctea, então, uma delícia, o mesmo não se pode aplicar ao mingau de cachorro, intragável. Mas a crença numa moqueca de peixe, por cuidado, sofisticação ou gulodice, primeiramente bela à vista, tem mais encanto, como certa vez observou o jornalista e poeta, já morto, Béu Machado, em um belo texto para a excelente revista “Viver Bahia”, na década de 70.  No Youtube, João Gilberto, Gal Costa & Caetano Veloso cantam Saudade da Bahia (TV Tupi, 1971).

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