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Pernas, muitas pernas. E o juízo, sujeito oculto

Gerson Brasil, jornalista e escritor

Quando o corpo sai a passeio, a indulgência é refutada, deparamo-nos com receios, contrariedades, febre, fibras esticadas, como se fossem tripas à espera de recheios, sem consistência para serem apreciados; instala-se de súbito a recorrência à resolução de problemas.

Não se encontravam na esquina, na farda do policial, tampouco pularam a cerca da casa e se alojaram desafiadoramente na família, com reverberações insondáveis, mesmo que fossem utilizados alguns métodos de conhecimentos consagrados ou em vias de serem cancelados, mas trazendo uma novidade rejeitada, como todo enunciado que provoca mal-estar, incluindo aqueles sagrados, ora pro nobis peccatóribus, nunc, et in hora mortis nostræ.( rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa morte), e zombarias

Era difícil falar com o corpo, obviamente porque estava de férias e não atendia a telefonemas, aonde se encontrava só cabiam as dores, o cansaço, a irritação e a abjuração a deus, ao diabo e ao inferno. Seria uma manifestação ardilosa do inferno? Descuramos de lhe perscrutar as inquietações, as reclamações debaixo da cama. Teria sido a secretária cumprindo um excelente papel de alcoviteira, fone no ouvido, escutando as instruções, e as alternando com Doris Day cantando ‘Dream A Little Dream Of Me’? Por isso não se pode confiar nessas pessoas? Quem são? Montaigne designava seu tempo a viagens, refeições, escritas e não se descuidava de deixar para os galbas moedas perdidas propositadamente, para serem achadas de modo glorioso, a fortalecer o trabalho necessário. Seria a família um maço de dúvidas e sobressaltos e só o conciliábulo da igreja e da multidão a mantém unida na desunião, consagradora?

Se os artistas de circo se gabam das cenas ilusórias, com a mulher sendo serrada no meio, sem dizer um aí e adrede, logo adiante, aparece na posição de um cônsul romano – ‘braço levantado, sorriso de insatisfação, mas de gáudio’, com um terço dos seios à mostra e o biquíni que violou a seção 29 para enquadramento no manequim 46, à custa da flexibilidade do elástico e malha sempre vermelha, a lembrar capa de toureiros e a habilidade do touro se dobrar a deus.

Pernas, muitas pernas, levam o juízo a despir-se. Com salto alto, a se sobrepor à engenharia, abrem caminho para a abnegação, santuário de risos deliciosos e satisfação abissal, ‘con su permisión’, mesmo imaginariamente, para não correr risco de ser impreciso, intrometido, charlatão e cometer impropriedades punidas na justiça, por deus e mais severamente pela vizinhança. Lá vai o tarado.

Há a crença de que a retidão do espírito faz o homem seguir o caminho da virtude, se afastar dos prejuízos, das maldades, das violências e assimilar fingimento para tragar as impertinências da casa, com regras, sugestões e determinações insondáveis e ‘realistas’, como a mesa e o vaso. Esse positivismo, educado, também respira pernas, ou as acrescenta, religiosamente, ou por far niente. O espírito deriva do materialismo, não se trata de injúria. E as pernas confabulam com os miolos onde estão guardados os juízos. O jurisconsulto Alberto de Solermo, às portas das vestes cardinalícias, costumava fumar charutos e dedicar o juízo às pernas que os bancos cruzavam, ou iam em direção a um objetivo, poderia ser outro, impossível o cálculo. Outras ajudavam a pausa do cardinalício, algumas se sentiam orgulhosas nas meias e havia aquelas que destronavam as manequins, ‘sin recordar que existen’. Sizudas e alegres venciam buzinas, consumiam, bebiam e jogam fora invejas e metiam medo a cachorros mal educados e crianças por prazer ou punição a imitá-los.

Não é preciso esforço ou aguarrás para descansar o juízo nas pernas e elas se acomodarem na construção ‘de un placer sin precedentes’. Quando estava diante dos alunos de direito constitucional, Solermo ressaltava as grandes conquistas das pernas de não se enquadrar na negação e nem na permissão para parar em frente de uma loja, mas se recusavam a subir escadarias contraditórias, porque foram pensadas e realizadas esteticamente. A escadaria helicoidal do Museu do Vaticano, de Giuseppe Momo, foi construída para afligir as pernas e não permitir apreciá-las.

Quando o juízo acompanha as pernas, vis a vis, face a face, a serenidade da observação recai sobre uma obra de arte. Solermo costumava dar uma boa caminhada antes de chegar à faculdade para melhor expressar o direito consagrado do livre trânsito, e incluiu as pernas como ação duradora e de grande contribuição ao individualismo criado pelo renascimento. As pernas correm o mundo e o juízo, como não pode acompanhá-las, pedala de bicicleta. Há tempo de pensar nas pernas, mesmo porque a pressa é inabitável e as consequências às vezes funestas. Só cabe rememorá-las, nenhuma sentença a ser formatada. E como disse Drummond, “os olhos não perguntam nada”. A alegria vem da imaginação e de gostar de ver pernas.

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