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Prólogo de quase um acampamento

Gerson Brasil*

O Brasil vive no prólogo, na preliminar. Muitos escritores, historiadores, pensadores, tentaram dar uma formatação que se impusesse como guia, na expectativa de poder, afinal, sair da selva escura e desembarcar na terra Nuestra. Um exercício a se renovar, periodicamente, mas sem o impacto esperado, ou aguardado, o que torna o ambiente sempre irritadiço, nas declarações pomposas, mas alugadas, a quem, por ora, cabe; gestos largos, decisões que assustam a lei, mas ‘gloriosamente identificadas’ per si com o lema Ordem e Progresso.

No entanto, sem muito esforço, mais identificadas às cercanias das fabulações, e passando longe desse vasto império chamado ciência, especialmente, as human sciences, traduzidas pelos ingleses como teoria social, termo mais apropriado para enfrentar o diabo que assombra o mundo e na letra de Rosa “regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até nas crianças”.

Dar conta do prólogo foi a tarefa que se atribuiu o Beato Sebastião, de Deus e o Diabo na Terra do Sol, anunciando que lá nas terras do Monte Santo o rio se tornaria leite e do pó da terra brotaria o pão. Quem fosse pobre se tornaria rico e os ricos iriam, não sei se por castigo, penitência ou livre arbítrio, para as profundezas do inferno. Sebastião, copiado profusamente, não recebeu os direitos autorais; descaradamente, negaram-lhe a paternidade, e na desfaçatez se esconderam em Camões e seus mares nunca antes navegados.

Esse prólogo até hoje revivido, requentado, com outros matizes, como acabar com a fome, redimir os necessitados, mas, com a devida conferência partidária, sem a qual não seria possível alcançar a união dos povos, ou a união da “Nuestra América”, como sonhou o cubano José Martí, 1853. Culto, desconfiado e prudente, alertou que as nações não poderiam se sobrepujar a América Hispânica, rechaçando o populismo, o caudilhismo e essa vontade imaculada de redenção.

“Um povo não é a vontade de um só homem, por mais pura que ela seja, nem o empenho pueril de realizar num grupo humano o ideal ingênuo de um espírito celestial, cego, formado na cambaleante universidade das nuvens”. Todo o empenho e prólogo de Martí resultaram em vastidões de terras e governos cambiantes, por ele antevistos: “Unir-se-ão os povos? Dividir-se-ão, por ambições mesquinhas e ciúmes provinciais, naçõezinhas desmioladas, extraviadas, laterais, dialéticas…? ”

Como no poema de Drummond, o prólogo social da América, talvez por descuido, ou na dignidade de uma farsa, tenha pulado o muro, subido numa árvore em tempo de se estrepar e se estrepou. Mas o portenho Macedonio Fernández, nascido em 1874, desviou-se de Martí, que queria primeiro ouvir o povo e depois a literatura, e pensou uma obra somente de prólogos.

Dizia ser desperdício compor um livro de 500 páginas, quando se podia facilmente remetê-lo à pouca tinta. “Publico aqui um prólogo de tal romance, pois espero fazer obra tão fiel a essas exigências que personagens, acontecimentos e chistes comprovem sua seriedade em ensaios especiais”.

O prólogo de Macedonio reverberou em Bioy Casares, Cortázar, Borges -, que se dizia um dos dozes discípulos do escritor -, e em tantos outros escribas latinos-americanos, formando um corpo literário de admiração, tanto na Europa, como nos Estados Unidos e mundo afora, resultando no prêmio Nobel de Literatura dado a Vargas Llosa, Gabriela Mistral, Miguel Ángel Asturias, Pablo Neruda, Gabriel García Márquez e Octavio Paz.

O mais famoso, e mais antigo prólogo da literatura ocidental, é do florentino Dante Alighieri, na Vita Nova, livro provavelmente composto entre 1292 e 1293. Antes de começar a prosa e os sonetos dirigidos a Beatriz do sonho ou uma florentina vista na rua, Dante faz um prólogo convidando o leitor a tomar a escrita na letra e no inebriado, sem padecerem de ciúmes ou de um lugar especial, mesmo porque trata-se do relato aproximado da memória. “Naquela parte do livro da minha memória, diante da qual pouco se poderia ler, acha-se uma rubrica que diz: Incipit vita nova. Sobre a qual rubrica eu acho escritas as palavras que é meu intento transcrever neste livro; e, se não todas, ao menos a sua sentença”.

Outro comemorado prólogo, muito comentado, pertence a Geoffrey Chaucer, 1342, e está disposto no “Contos da Cantuária”, em prosa e verso, sob a assinatura daquele a quem se debita o nascimento da literatura inglesa; compondo várias histórias, a percorrer a sátira, os costumes, o moral laico. Escrita que o tornou conhecido mundialmente e empreendendo a glória à lettre dos ingleses. “Quando o chuvoso abril em doce aragem/ Desfez março e a secura da estiagem, Banhando toda a terra no licor, que encorpa o caule e redesperta a flor (…) Da vária terra inglesa, gente vária/Põe-se a peregrinar à Cantuária”. Chaucer convida o leitor a ouvir várias narrativas de diversas pessoas, médico, vendedor de indulgências, moleiro, contadas pelo narrador, que se apraz em troçar.

O prólogo que o Brasil tenta engendrar, às vezes se servindo de pensadores, escritores, jornalistas, pintores, músicos, inclui também as crenças, a colocar de lado o exercício da lógica, ou do positivismo, com uma forte carga religiosa. Glauber Rocha e Sérgio Ricardo reconstituíram, admiravelmente, essa ânsia na canção do Filme Deus e o Diabo na Terra do Sol. “Sebastião nasceu do fogo/mês de fevereiro/anunciando que a desgraça ia acabar com o mundo inteiro /mas que ele podia salvar quem estivesse ao lado dele, que era, que era santo, /era santo milagreiro”.

Esse aceno místico está presente em várias obras literárias e canções populares que contribuíram para a formação do Imaginário Brasileiro, a despeito de Hollywood ter se sobreposto, com um vasto repertório, da revista em quadrinhos, aos filmes, canções e produtos que rivalizavam com a fé, basta visitar o chiclete e o cigarro.

Dois grandes escritores, Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade anotaram suas contribuições ao prólogo brasileiro de modos diferentes, mas ambos com a mão na estética. “Se alguma coisa pode valer o meu desgosto, a insatisfação que eu me causo, que os outros não sentem assim na beira do caminho, espiando a multidão passar. Façam ou se recusem a fazer arte, ciência, ofícios. Mas não fiquem apenas nisto, espiões da vida, camuflados em técnicos da vida, espiando a multidão passar. Marchem com as multidões”. Drummond, provavelmente, numa imensa lassidão, anotou: “Casas entre bananeiras/ mulheres entre laranjeiras/ pomar amor cantar/ Um homem vai devagar/ um cachorro vai devagar/ Um burro vai devagar/ Devagar… as janelas olham/ Eta vida besta, meu Deus”.

Sem que ainda tenha terminado, até o momento, o prólogo brasileiro resulta, por ora, num quase acampamento, sem que se saiba do que se trata: de especulação ou negligência do ouvinte, presenteado, mas sem indicação que o alerte. Prólogo próximo da curiosidade de “saber até onde isso levará”. Si esto es posible, ou deve ser acatado simplesmente.

Gerson Brasil, jornalista e escritor

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