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Vencerei as dores da perna e o talibã da bula do remédio?

Gerson Brasil

Secretário de Redação da Tribuna da Bahia, jornalista e escritor

Para Socorro

Dói, com a ajuda da magnífica escada. As pernas protestam. Mas o arquiteto, de 23 anos, é louvado em cânticos na ousadia e imprudência criativa do que resta do publico feminino, outrora glorificado e hoje preste a freqüentar a lista da inquisição dos construtos sociales. Sonia, algumas quadras adiante no requinte do latim e da língua de Dante repassados pela mãe se faz de sonsa a investir naquele que supostamente guarda a mesma arte de Brunellesco, autor do famoso Duomo, a cúpula da catedral de Santa Maria Del Fiore, em Florença.

Mas até agora o presente só no infortúnio. Aconteceu no estacionamento do supermercado, quando, por pouco, não roça o carro no automóvel dirigido pelas pretensões do seu desejo. Barbeira, sim, mas antes de Sonia, algumas mulheres roçavam alegremente, com cupidez lassa, e sem profissão de fé, quando o corpo ainda não estava sob vigília libertadora vulgar. As férias eram escolares e não proletárias ou classimedista e o veraneio um modo divertido de restaurar o cansaço produzido pelos intermináveis afazeres diários.

Sonia, adulta, relevou a cara feia instaurada de súbito pelo arquiteto e o açoite de uma porra mezzo, recebida para Al di lá, além da raiva, afinal, “non credevo possibile si potessero dire queste parole”. O  emissor da pedrada sequer prestou a atenção nos 1,80m, esculpidos no mediterrâneo, abordo de uma bellezza ma greca che italiana.

Repete-se na vulgata da observação que as mulheres não sabem dirigir e que os homens cunham a existência a bordo de um automóvel para ira de Marx, que supunha, acertadamente, alocada na base material da vida, mas a multidão lhe deu as costas, embora, há quem tente reverter o quadro, sem sucesso. La Rochefoucauld cinicamente já havia cravado a virtude como algo que muitas vezes não passa de um conjunto de “ações e de diversos interesses que a sorte ou a nossa habilidade sabem arranjar”.

É bom não ler esse francês, especialmente à noite. Nasceu em 1613, se casou com 14 anos e em 1637 participou de uma conspiração para alijar a rainha e terminou sendo preso e deportado. Dizem que Nietzsche tinha como livro de cabeceira as “Máximas e Reflexões”, mas a escritora norte americana Susan Sontag lhe seguiu os passos e se arrependeu; colhida na madrugada com insônia e irritação; mal disse a hora em que resolveu se aventurar na leitura.

Certos livros são piores do que a dor, se barbitúricos não redime, do mesmo modo como a remissão o faz com os pecados, colocando a religião corpos à frente da ciência, sem precisar de laboratórios, pesquisa, tecnologia e toda uma argumentação da ratio, mas insuficiente, mesmo com a mega engenharia, para dar conta daquele rio de João Cabral de Melo Neto, como um “Cão sem Pluma”, que jamais se abre à “inquietação de faca que há nos peixes”.

Certos livros causam mais estragos do que a dor; abrem revoltas, insurreições, destemperos, angústia; não é recomendável ler “A Paixão Segundo G.H.” no inverno e a prudência também vale para o “Morro dos Ventos Uivantes”. A implacável  Catherine Earnshaw retirou do amor todo o sublime e numa mimesi de fogo, destemor, resiliência e ferocidade o defendeu perante protocolos e fez capaz de enfrentar os chamados grandes felinos.

Roque corre as vistas pela minha biblioteca, às vezes ler alguma coisa, antes, me pergunta onde estão os romances e a poesia. Outro dia estava lendo as “Novas Cartas Portuguesas”, quase não respirava. Quando leu que Maiana Mendes pôs “ambas as mãos sobre o corpo, e deu um pontapé no cu dos outros legítimos superiores”, voltou a cabeça para minha direção e disse: ainda bem que hoje é sexta e assim como as suas coxas me desobrigo de resolver qualquer equação. Ousado, mas roçou a vulgaridade.

Mas nem Roque, nem os livros me livraram das dores nas pernas, irritada, hesitei entre os medicamentos disponíveis. Fui burra e não precavida. O nome já diz drogas e não pirulito. No corredor do hospital ao passar por um médico novato e franzir a cara, devido a dor, ele gentilmente me perguntou o que estava acontecendo, eu relatei e ele tirou do jaleco um bloco de receita e prescreveu o remédio. Senti-me aliviada. Na saída do hospital, comprei o remédio e a balconista reteve a receita. Fiquei intrigada. Agora, na prudência devida fui ler a bula e lá estava o relato que havia risco de choque anafilático, asma, inflamação intestinal e das mucosas. E mais assustador ainda, a bula dizia que não era possível estimar a freqüência dessas reações, ou seja, poderia ser rara ou recorrente. Não disse nada a Roque. Tomei banho, bebi mingau, ingeri uma cápsula do remédio e comecei a ler “O Século das Luzes”, o prefácio foi escrito por Otto Maria Carpeux e não pelo talibã da bula do remédio, ainda bem. O Flamengo joga domingo e moi, Wilson Batista, a Charanga do Jaime e Gal vamos prá lá. Na volta, para purgar a zoeira vou ouvir no Youtube Adorate Devote, nas vozes do coro do Mosteiro de São Bento da Bahia. Vou recomendar o canto a segura e bendita soprano Socorro.

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