Carta ao coração
Para meu irmão, Zé Araújo
Não partilho dos teus sonhos
Porém sonhos não precisas ter
Pois, ainda és menino
E menino deves continuar a ser…
Lembro-te, menino, com teus brinquedos quebrados ou mesmo remendados, sem querer me emprestar. Assim como eu, preferias os velhos brinquedos a render-se às seduções das barganhas e das chantagens, muitas vezes lucrativas, feitas por mim ou por teus amigos.
Dos olhos compridos dos pequenos invejosos ou da acintosa impulsividade dos mais ousados, defendia teus poucos, mas valiosos cacarecos, com a coragem dos guerreiros romanos.
– É que criança nunca cumpre o décimo mandamento!
– Quantas figurinhas, às vezes até carimbadas, ou bolas de gude, ou carretéis de linha, fio “Vinte e quatro” ou “Trinta coração” ou mesmo arraias se viram rejeitadas?
Com mais carinho e suavidade brincávamos com os nossos carrinhos já deformados de tantos consertos, à base de goma arábica ou esparadrapos, tentando preservá-los da quebra irrecuperável.
Lembro-me dos nossos cachelos1, feitos com tanto esmero que, por vezes, superavam em seus movimentos as mais belas arraias. Nessas oportunidades, aproveitávamos para tirar sarros tão irritantes que, frequentemente, geravam xingamentos, desavenças, pedradas e carreirões.
Lembro-te franzino, porém com muita resistência às enfermidades. Lembro-me das tuas birras e do teu ímpeto para decidir vitórias a teu favor. Querias ganhar no peito e na marra, quando senão, tentavas mudar as regras do jogo. Às vezes ficava meio perplexo diante da tua ousadia. Chegava a pensar que investias demasiado em tua franzinês. Tão magro, tão leve que não valia a pena desafiá-lo. Quem assim procedesse correria o risco de sair como covarde ou aproveitador.
Nas pedaladas, eras razoavelmente bom, eras muito melhor nas pegadas. O tempero de cola e vidro moído que passavas nas linhas dos cachelos, às vezes, saía caroçudo, mas, mesmo assim, davas a sorte de cortar uma ou outra arraia. Quando sentias que o adversário era melhor, partias para o gongolo2, provocando a ira dos moleques que quase sempre viam os seus pão-de-leite4 e meias-saias4 caírem no mocó3. Pronto! Nem um nem outro. Dois vencedores, nunca dois perdedores.
Lembro-te menino, lembro-te moleque. Lembro-te também, ansioso em querer ser gente grande para dar forma aos desejos. Simplórios desejos, muitos deles frustrados pela falta de dinheiro para comprar aquela bola de couro ou a bicicleta dos nossos sonhos. Desejos abafados pela dificuldade financeira, pelo excesso de proteção paternal, ou até pelo rigor da educação daqueles dias.
Mas não deixávamos de ser felizes. Se não tínhamos a bicicleta, alugávamos. Se faltava dinheiro para a bola de couro, deste a sorte de ganhar uma – não sei como! , numa tampinha do guaraná Fratelli Vita. Daquela bola quase nada restou, carcomida que foi no cascalho da via pública.
Lembro-te assim: meio astuto, meio medroso, mas sempre determinado. Não me lembro dos teus sonhos. Dos teus planos. Deles não partilhei. Talvez não fossem importantes, ou quem sabe, sequer os tiveste, por falta de tempo, mediante o agito das molequices. Naqueles tempos o que importava era o presente, nele vivíamos plenamente os nossos dias e deixávamos a vida nos conduzir livremente a um destino que não nos importava. Vivíamos assim, como hoje ainda vives o presente!…? O presente era tudo que tínhamos, é tudo que temos, na verdade, tudo o que precisamos ter.
O presente é passado, é futuro. O presente é você, menino e gente grande, como não imaginarias crescer e ser.
Ainda te vejo menino, tal qual menino pretendes ser. Nas lidas de amor, sem regras e com jogo, com vivacidade, alegria e umas pitadas de irreverência e inconsequência.
Vejo que ainda cultivas o desejo mágico de recompor os teus brinquedos, agora sem o uso do esparadrapo ou da goma arábica. Sei que tens a intenção de deixa-los inteiros, sem os remendos, sem as cicatrizes, sem as marcas no tempo. Impossível?
Somente os meninos de sentimentos pueris conseguem superar suas próprias amarguras, para semear em solo árido a singeleza do afeto recíproco. Apenas os adultos que ainda guardam a criança em seu espírito, conseguem o milagre de despertar as belas adormecidas nas feras dos contos de fada, digo, da vida.
Menino, ainda é e ainda tens um brinquedo quebrado que resiste e que pretendes preservá-lo, recompondo-o e protegendo-o como uma relíquia dos céus.
Vejo que continuas a investir na tua franzinês e ainda gostas de desafios, só que não mais existem os moleques do teu tempo. Os adversários são teus sentimentos, teus conceitos, tuas convicções, tuas dúvidas e andam escondidos no lúgubre silêncio do pecado ou na incompreensão da complexa relação de amor.
Vejo que ainda cultivas a vitalidade do guerreiro que cumpre um destino de conquistas.
Não te quero distante
Tão pouco muito perto
Quero-te presente
Como sempre estiveste
Em meu coração…
1.Cachelo: Arraia de menino pobre, feita com taliscas de coqueiro enfiadas em papel de jornal, caderno ou embrulho, sem uso de cola.
2.Gongolo: Expressão utilizada para definir um tipo de competição entre empinadores de arraias quando estas terminam propositalmente emaranhadas, emboladas, embaraçadas uma com a outra.
3. Mocó: Expressão utilizada pela meninada, para definis o local onde perdiam a arraias por ficarem enganchadas nos fios de energia elétrica, árvores, coqueiros.
4.Modelos de arraias, feitas por profissionais, cujo retângulos é dividido em duas bandas verticais ou horizontais, simétricas, em papel de seda de diferentes cores;
Jair Araújo – escritor
Membro Correspondente da ALACIB – Academia de Letras, Artes e Ciências Brasil, Mariana – MG; Membro efetivo da SPBA – Sociedade Brasileira de Poetas Aldravianistas e do ICINBRA – Instituto de Culturas Internacionais do Brasil. @jairsaraujo48; jairsaraujo48@gmail.com
Que texto bonito, meu amigo. Tão particular, tão menino, tão saudoso. Parabéns.
Ler as crônicas do Escritor e Poeta Jair Araújo, é sem dúvida um refrigério para a alma nestes conturbados dias. É poder acreditar na alegria, na amorosidade, na fé, no ser humano que somos capazes de vivenciar o “Amar ao próximo como a si mesmo”. Esperamos mais publicações deste fantástico autor.
Lindo texto
Minha mãe, com certeza, teria gostado muito.
Que lindas palavras! Ler este comentário de um escritor de quem admiro e respeito engrandece a alma deste aprendiz. Gratidão, nobre Comendador!
Ler as crônicas do Escritor e Poeta Jair Araújo, é sem dúvida um refrigério para a alma nestes conturbados dias. É poder acreditar na alegria, na amorosidade, na fé, no ser humano que somos capazes de vivenciar o “Amar ao próximo como a si mesmo”. Esperamos mais publicações deste fantástico autor.
Parabéns… Sua simplicidade nas lembranças propõem amizade e lealdade. Sua busca e seu achado iluminam e desabrocham na vontade de também “ir” e encontrar semelhanças históricas da vida de todos nós. Parabéns pela Luz e encontros.