Um ponto de um conto

Lá fora um grupo de crianças sujas corre por entre escorregadores, hastes e balanços do parquinho da escola em frente ao quintal da minha casa. Digo, sujas e felizes, no intervalo entre os toques das sirenes que anunciam recreio e aula. Não parecem pensar em nada, nada além de serem os próximos a descerem a rampa escorregando, ou cantarem o refrão da vitória no próximo game. Não está na pauta a matemática nem a geografia, menos ainda os problemas sociais do momento e os desdobramentos destes para o futuro. Apenas uma solene e eficaz alienação benfazeja. A vida está ali à minha frente, a poucos metros; viceja, reluz e floresce, como o recorte irônico de uma realidade ideal e utópica. A grama verde, salpicada de jasmins, o vento fresco e o bailar dos ramos pendentes das faias que dão sombra ao jardim parecem acenar em vão aos que transitam ao redor de tudo, indiferentes e apressados. Ao meu ver, mundos particulares, ilhas sociais. Do lado de cá da cerca, o meu. Plantas mortas, folhas murchas, galhos secos pelo chão. Uma cadeira antiga de forro roto à sombra da antessala testemunha e analisa a vida alheia. Silêncio e cheiro de mofo transbordam daquele lugar lúgubre. Tédio. A solidão conspira contra a alegria. Posso ouvir o sopro lento e continuado de minhas ventas, e incomoda. Estou vivo, posso ver, mas não muito, devo crer. As lembranças me matam amiúde, me remetem a outros tempos, a outras vidas, me atormentam miudinho. Olho para fora e não estou lá; estou dentro de mim, preso lá nos quartos do fundo, sozinho, fraco, culpado, sem perdão. Quem eu era ou quem fui se dilui dia a dia, se esvai em imagens etéreas imprecisas, uma morte cruel sem um corpo para enterrar. Os amigos, eram muitos, como bolhas vencidas, espocaram, pois não eram. As medalhas, muitos méritos, como palha, igual valor. O futuro, página aberta, como um filme, ilusão. Os sons, o movimento e as luzes lá de fora contrastam com o meu silêncio interior, o marasmo e os tons de cinza que mancham a tela da minha alma perdida. É teimosia viver, grande e contumaz, sobretudo quando esta se resume a um instante, sem caminhos para depois. Vejo agora as crianças saindo correndo, mochilas nas costas, um mundo à frente…  Vão, filhos, ganhem o mundo, vivam a vida; até amanhã…

Itamar Bezerra.

Teólogo, escritor e poeta

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